Poucos espetáculos mexeram tanto comigo como a montagem da Companhia de Teatro da UFBA para A Visita da Velha Senhora, clássico do dramaturgo Friedrich Dürrenmatt. O espetáculo junta o melhor dos mundos: um texto canônico do teatro mundial com uma montagem primorosa, que trata de questões perturbadoras com bom humor, profundidade, atuações cativantes e um senso estético impecável.
Na história, a bilionária sexagenária Clara Zahanassian visita sua terra natal, Barro Mole, uma pequena cidade pauperizada onde as grandes locomotivas do continente não param mais. Os moradores, pobres, desempregados, sem perspectiva, enxergam na visita da velha senhora sua última esperança. Clara resolve dar um bilhão à cidade, mas com uma condição: que alguém mate Alfredo Schill, um rapaz que há 45 anos praticou uma terrível atrocidade contra ela.
Produções artísticas sobre justiça, poder e dilemas morais já foram muito exploradas ao longo do tempo – de cabeça, consigo ver aproximações do espetáculo com O Mercador de Veneza, Crime e Castigo, 12 Homens e uma Sentença, Dogville, até mesmo Bacurau. Mas acompanhar uma história com esse teor no teatro, meus amigos, é outra parada.
O teatro é esse acontecimento vivo, tridimensional, uma experiência irrepetível e sem mediações, na frente da nossa carne. Não sei vocês, mas o impacto emocional que isso me causa é particularmente devastador. Tanto que assistir a uma peça ruim é horrível demais – a memória fica no corpo e demora dias para passar. Mas quando a peça é boa, a porrada emocional é direta e remexe um monte de coisas na nossa psiquê que dificilmente paramos para olhar sozinhos.
O que mais me pegou na história foi me deparar com a generalizada miséria humana, em todos os sentidos de miséria. É como se a mente do homem fosse um adendo tenebroso à dificuldade que é ser vivo, com fomes, medos, impotências e poços emocionais sem fundo. De positivo, como toda arte que bagunça nossas feridas, é dar um passo atrás, se colocar em nosso lugar e buscar olhar para si mesmo e para a vida com um pouco mais de compaixão e generosidade. Baixar a guarda de certezas e condenações para evitar aumentar o poço, quem sabe aliviar a miséria.
O texto no teatro é o ponto de partida para toda essa magia acontecer, mas é na montagem que isso se concretiza ou não. E o trabalho da Escola de Teatro da UFBA nesse sentido é irretocável. A cenografia, trilha sonora e iluminação se complementam para a gente imergir na agonia do protagonista. Chorei na cena do julgamento, com seu fundo vermelho imenso e silhuetas humanas em formato de pirâmide ao som de In The Flesh, do Pink Floyd.
Tudo isso com um elenco brilhante, com Ítala Nandi, Rui Manthur, Lúcio Tranchesi, Frank Menezes e Celso JR (só para citar os principais) e a direção de Gil Vicente Tavares – haja talento para fazer tudo isso funcionar.
Portanto, se você nunca foi ao teatro, veja A Visita da Velha Senhora e sinta tudo o que essa arte pode proporcionar. Se você gosta de teatro, a ida é obrigatória. Não assisti a outras versões do texto, mas o prazer estético e o impacto foi tão grande que tenho certeza que o trabalho da Companhia de Teatro da UFBA é referência para a montagem desse espetáculo.
Serviço – A Visita da Velha Senhora em Salvador
● Local: Teatro Martim Gonçalves – Canela;
● Data: 06 a 29 de setembro (sextas, sábados e domingos);
● Horário: 19h;
● Ingresso: Gratuito (senhas distribuídas uma hora antes do espetáculo, chegue cedo para garantir seu lugar).
Imagem: 1. Cartaz de divulgação oficial; 2. Captura de imagem da TVE.
Resenha extremamente potente! Senti um pouco desta sinergia que o teatro emana através das suas sensações traduzidas neste texto. Irei me organizar para ver " A visita da velha senhora". Sem contar que é um deleite assistir à Cia de Teatro da UFBA, nunca me decepciono quando vou. E ainda por cima com direção do Gil Vicente Tavares e atuação do Frank Menezes. Saber que é de graça é a cereja do bolo. Obrigada pela dica, Felipe.