VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, INSTITUCIONAL E TRABALHISTA: o Brasil falhou com mais uma mulher
- Nieissa Pereira

- 6 de jul.
- 4 min de leitura

Nesta última semana, a internet se chocou com a notícia de que dentro das dependências da unidade da BRF em Lucas do Rio Verde (MT), uma trabalhadora grávida de gêmeas entrou em trabalho de parto. Com fortes dores, vômitos e tontura, a mãe teve seu pedido de socorro ignorado por superiores. O resultado: suas filhas nasceram ali mesmo, no chão da fábrica e pouco depois vieram à óbito.
Esse caso ocorreu em abril de 2024, mas foi no dia 27 de junho que a história veio à tona e repercutiu na internet e demais canais de comunicação. Esse não é apenas um caso isolado de negligência. É a expressão cruel da necropolítica corporativa, que escolhe quem vive e quem morre em nome do lucro. A mulher era migrante, venezuelana, economicamente vulnerável, inserida em uma das categorias laborais mais exploradas do país: os frigoríficos.
Segundo os autos do processo e relatos veiculados por diferentes veículos, como G1, UOL e Pragmatismo Político, a trabalhadora sentiu os sintomas do parto por volta das 3h40 da madrugada. Comunicou à chefia que precisava sair para ser atendida. A resposta foi negativa. A supervisora teria alegado que “a produção não podia parar”. Esse argumento, revela como vidas são facilmente subordinadas à engrenagem industrial e da obtenção do lucro a qualquer custo.
Na ausência de atendimento ao seu apelo, a mulher precisou deixar o setor por conta própria e tentar caminhar até o ponto de ônibus. A bolsa rompeu ainda dentro das instalações. Sem nenhuma assistência médica e em estado de desespero, deu à luz sozinha. As duas meninas morreram em seguida.
A BRF, empresa conhecida no setor de alimentos, alegou que a funcionária teria recusado atendimento — versão que não se sustenta diante das provas apresentadas no processo. As imagens das câmeras de segurança e testemunhos de funcionários confirmaram a ausência de suporte e a tentativa da empresa de transferir a culpa para a vítima.
Como se não bastasse toda essa tragédia e sofrimento, o caso revelou algo ainda mais grave: o mesmo supervisor que negou a liberação à gestante já havia sido denunciado anteriormente por assédio moral contra outras mulheres grávidas na empresa. Os processos anteriores, de 2019, resultaram em condenações contra a BRF. Em um deles, uma funcionária foi obrigada a exercer funções pesadas durante a gravidez; em outro, foi humilhada após pedir mudança de cargo.
A reincidência revela que não se trata de erro pontual e demonstra a existência de uma cultura organizacional que tolera o abuso, ignora o sofrimento e transforma o espaço de trabalho em um campo de violência sistemática contra as mulheres, além dos outros tipos de violência enfrentadas pelas mulheres cotidianamente.
Em junho de 2025, a 2ª Vara do Trabalho de Lucas do Rio Verde condenou a BRF ao pagamento de R$ 150 mil por danos morais, além de verbas rescisórias. A Justiça também reconheceu a rescisão indireta do contrato de trabalho, equiparando a conduta patronal a uma falta grave que tornou impossível a continuidade do vínculo empregatício.
Apesar disso, a BRF recorreu da decisão. A tentativa de reverter a condenação expõe o descompromisso da empresa com a reparação de uma dor irreparável. Afinal, o que são R$ 150 mil para uma multinacional que lucrou mais de R$ 1 bilhão no último trimestre? A lógica do capital não se curva diante do luto de uma mãe nem diante da morte de duas crianças.
Esse caso escancara como a exploração do trabalho no Brasil tem cor, gênero e nacionalidade. A vítima é mulher, pobre, latina, migrante — três camadas de vulnerabilidade que, somadas, a colocam na periferia da dignidade. O que se passou com ela não pode ser analisado apenas como “falha humana” ou “descuido”, mas como resultado de uma política estrutural que lucra com corpos exauridos.
A ausência de fiscalização, a naturalização do adoecimento e o silenciamento das denúncias formam a receita perfeita para o desastre. O setor frigorífico é conhecido pelas jornadas exaustivas, ritmos de produção desumanos e riscos constantes à saúde. E, mesmo diante disso, os direitos trabalhistas são frequentemente ignorados ou relativizados — sobretudo quando se trata de mulheres.
A recusa em permitir que a gestante buscasse atendimento médico e a ausência de apoio durante o parto configuram uma forma cruel de violência obstétrica, aqui agravada pela face da violência institucional. A mulher não foi apenas ignorada; foi desassistida pelo próprio sistema que deveria protegê-la.
A Constituição Federal de 1988 garante, no artigo 7º, inciso XX, a proteção à maternidade, inclusive no ambiente de trabalho. A CLT e as normas regulamentadoras de segurança e medicina do trabalho estabelecem direitos específicos às gestantes. Nada disso foi observado.
Mais do que uma tragédia individual, a morte das gêmeas no frigorífico da BRF deve ser entendida como síntese de um projeto de país que sacrifica os mais vulneráveis para preservar os lucros dos grandes. A recorrência de casos como este deveria escandalizar, mobilizar, gerar rupturas. Mas não. O silêncio é o maior cúmplice da violência.
A dor dessa mãe não pode ser reduzida a uma cifra em um processo judicial. O luto que ela carrega é também o luto de uma sociedade que falha — sistematicamente — com suas mulheres, sobretudo as que estão na base da pirâmide social.
A indignação não pode durar só enquanto o assunto repercute nas redes. É preciso que a tragédia dessas meninas gere mobilização, pressão, fiscalização, denúncia. Porque a vida das mulheres trabalhadoras precisa importar — mesmo quando seus corpos não geram lucro, mesmo quando sangram no chão frio de uma fábrica.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943.
G1. Empresa condenada após grávida perder gêmeas em frigorífico de MT tenta reverter decisão. 30 de junho de 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2025/06/30/empresa-condenada-apos-gravida-perder-gemeas-em-frigorifico-de-mt-tenta-reverter-decisao-veja-o-que-se-sabe.ghtml. Acesso em: 01 jul. 2025.
Pragmatismo Político. BRF impede funcionária grávida de deixar o trabalho para dar à luz gêmeas, e bebês morrem. 30 de junho de 2025. Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2025/06/brf-impede-funcionaria-gravida-de-deixar-o-trabalho-para-dar-a-luz-gemeas-e-bebes-morrem.html. Acesso em 01 jul. 2025.
UOL. BRF deve indenizar funcionária que perdeu gêmeas dentro de frigorífico. 27 de junho de 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/06/27/brf-deve-indenizar-em-r-150-mil-funcionaria-que-perdeu-gemeos-no-trabalho.htm. Acesso em: 28 jun. 2025.
IMAGEM: Assembléia Legislativa de Sergipe



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