*Paulo Zan
Cazé mencionou meu livro em pré-venda quando deu entrevista num dos jornais da cidade. Foi bastante solícito comigo. Nos falamos rapidamente num evento editorial na Livraria da Doca. Ele, sentado com uma criança que supus ser o seu filho e com o editor e artista plástico dono da livraria. Falamos rapidamente. Mas foi o bastante. Depois de um tempo a gente conhece facilmente as pessoas pelo olhar e aperto de mãos, e ali eu já estava decidido a ler a sua literatura e saber mais do seu universo particular.
Quando o seu livro Ação de animais chegou lá em casa, fiquei feliz, por um lado com o trabalho editorial, e por outro lado com o sumário do livro, que se afinava ao que eu estava escrevendo naquele momento: o tema da ferocidade.
Abri o livro então.
Catalogado como “1. Literatura brasileira. 2. Prosa”, esse Ação de animais, do viajante Wladimir Cazé, nos traz fragmentos (de sonhos?), estes que se montam (será?) como um mosaico. As coisas não foram feitas para encaixar, mas para preencher uma falta que está ali. E mesmo assim a falta permanece.
É essa falta a “modernidade”?
O absurdo, conceito com o qual, pelo trabalho ficcional, o livro lida, é elemento extremamente presente na nossa realidade cotidiana — pensemos, como exemplo similar aos do livro, uma figura abjeta guiando um país e tentando dar um remédio a uma ema —, então por que não brincar com ele (o absurdo?) num jogo estranho onde não se reconhece a si mesmo?
É interessante imaginar esses entrecortes de cenas. Numa hora perseguimos um animal (um gato?) e, repentinamente, somos atravessados por uma senhora que é o animal mas que também é um tigre solto pela cidade.
Num outro momento passeamos (perigosamente?) de jipe com um motorista tresloucado saltando em todos os buracos possíveis. E esse jipe é nosso país, com o presidente como condutor. E seu chiqueirinho de apoiadores se torna possíveis “doutores da alegria”, ali prontos para interditá-lo. Olha que sonho!
O sonho, esse elemento surrealista no qual a contiguidade roda em outra frequência que não aquela a qual esperamos, torna-se parte constitutiva do livro. Sabe aquele meme do “você já olhou para uma pessoa e se perguntou o que será que se passa na cabeça dele?”. É por aí a coisa, de um modo bem mordaz e divertido. Cazé divide o livro em “história das coisas” e “ensaios ferozes” mas, no fim, são todos retratos muito ferozes de uma mente possível nos dias de hoje e nos de sempre.
“(Uma logomarca? Um objeto cortante? Uma peça de quebra-cabeça?)” (p. 29)
O livro brinca com a própria ideia de metalinguagem. Uma vez que traz para dentro de si várias perguntas desse tipo. Assim sendo, uso uma imagem do próprio livro para pensá-lo: pois o elefante se encontra numa zona estranha entre-lugares, e se isso é possível é porque “Algum fazendeiro mineiro influente deve ter conseguido isso do governo” (p. 58).
Me diverti horrores lendo algumas passagens, como não acontecia faz tempo com prosa de ficção. Me lembro de ter chorado de rir lendo A lua vem da Ásia e vendo a peça que adapta O púcaro búlgaro, de Walter Campos de Carvalho. Nessas obras, a loucura é trabalhada como elemento central para o non sense e mesmo, se queremos definir por aí, para o surrealismo. Algumas passagens do Ação de animais me trouxeram esse tipo de sensação de volta à mente.
Na página 41, leitores podem se contorcer com uma das cenas mais intrusivas e, portanto, tragicômicas que se poderia imaginar.
O pensamento intrusivo tem esse lado. É um impulso e ao mesmo tempo um grande medo, uma insanidade. Mas a gente pensa nessas coisas, e se pensamos é porque há algum grau de desejo aí. Ou seja, como aponta Natan Schäfer na orelha do livro, há precipícios de sonhos que são da ordem de serem analisados por um profissional da psicanálise. Mas como somos leitores curiosos, nos deleitamos com tudo isso.
O livro pode ser lido de diversas maneiras, ao gosto do cliente. Se por viés da troça política, do guia de viagem, por sonhos etc., fica a critério de cada um. Eu o leio como um bom representante de um dos lugares para a ficção contemporânea: um jogo de cena com o que chamamos de ficção e de realidade. Para que se montem verdadeiros mosaicos, como naqueles filmes animados do “spiderverso”, em que a técnica de desenho vai fazendo o personagem se transportar entre diferentes formas de mundo animado. É este o mosaico. Está dado. São essas as ações dos animais.
Após concluir a leitura, coloquei o livro na mochila para emprestar a um amigo. Segui com ele para a faculdade de filosofia. No terminal da Lapa, um vendedor disse:
— Sonho, um real, sacolinha pra viagem.
Confesso que fiquei tentado. Mas segui.
Em São Lázaro, a minha impaciência, mesmo com a bela vista da praia lá embaixo e o vento que não me deixa sentir calor, faz com que não espere muito mais de vinte minutos — sou um barbosiano convicto. De modo que logo estou em outro lugar.
Em trânsito. Num ônibus. Olhando os prédios intermináveis.
— Esse ônibus vai pra lá ou pra lá? — uma moça me pergunta, apontando com os dois indicadores as posições menos intuitivas possível.
Digo que o ônibus vai para lá, com um leve aceno de cabeça.
O ônibus para. A moça desce sem agradecer.
Eu sigo indiferente, como não se pode seguir.
Fico meio atordoado.
Estou sentado. Estava. (Estarei sentado quando você ler?).
(Ps. Escrevo isso sentado em algum lugar da cidade de Salvador. Meu amigo se atrasou. A barriga começa a roncar. Devia ter comprado aquele sonho?)
*autor de "Linha tênue" (contos, Margem, 2022) e "Trapaças" (contos, Caravana, 2023).
graduado em Filosofia e mestrando em Literatura e Cultura (UFBA).
Deu vontade de ler o livro a partir desta resenha e experiencia de leitura que joga entre o real e ficcional. O que seria de nós se não fosse o inconsciente e o sonho dentro de uma constante infinita de experiências? Amei a metáfora do elefante e o relato que produz essa correlação entre a vivência do leitor e da leitura com a temática do texto lido.