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Breve comentário da obra A Morte de Ivan Ilitch


fonte: https://garimpoliterario.wordpress.com/2015/09/20/resenha-a-morte-de-ivan-ilitch-liev-tolstoi/​

A novela de Liev Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch, de 1886, é uma daqueles romances realistas que traz discussões ainda atuais acerca das relações complexas da sociedade. O contexto é a modernidade ocidental, carregada pela crença crescente da racionalização do mundo da vida, ou calcada no homo economicus. A ciência vista como reificação do modelo de sociedade racional-instrumental, que encontrou no Iluminismo um grande propulsor para a modernidade tardia.


Na obra de Tolstoi, a personagem principal da trama é Ivan Ilitich, que vive no contexto político e social da Rússia czarista. O protagonista é um sujeito comum, que se adapta a uma forma de vida baseada na instrumentalidade e formalidade, típica de uma sociedade em transformação para o moderno, que busca se basear na organização e na extrema impessoalidade. Ilitich se insere na classe média, e tem como objetivo o status profissional, e uma vida leve, agradável e decente, como ele mesmo expressa em algumas passagens da obra.


Ilitich cursou direito, e após concluir a faculdade conseguiu rapidamente um cargo público. Após algum tempo, chegou a trabalhar no Ministério da Justiça.


Durante sua pacata vida, Ilitich conheceu a sua futura esposa, Praskovya Fiodorovna, em uma daquelas cerimônias reservadas a famílias e pessoas influentes, de classes mais abastadas da Rússia. Para sustentar uma boa reputação, e um olhar respeitoso à classe a qual pertencia, decidiu, de forma ocasional, que Fiodorovna seria sua esposa. Não porque a amava, mas porque ela se enquadrava aos moldes sociais da época. Construir uma família e ter um bom cargo profissional era um starus bem aceito na sociedade. Visto por outro ângulo, o personagem se envolve passivamente e sistematicamente pelos padrões sociais burgueses.


A esfera pública é a grande obsessão de Ilitich. É na impessoalidade e frieza do direito que ele sente a vida correr por suas veias. Em outras palavras, é no trabalho que ele se realiza: seja por visar sempre postos mais elevados, ou porque sente que o reconhecimento da sua existência perante a sociedade estaria fora do âmbito privado. E o mundo da racionalidade da vida pública, do cálculo, da frieza, do extremo rigor e formalidade, próprio da sociedade capitalista, despreza a intimidade do lar, da casa. E o que promulga esse tipo de sociedade é a extrema objetividade, que não dá margem à afetividade, ou aos sentimentos.


Há claramente em Ilitich uma internalização da tirania da razão em detrimento dos valores afetivos e intersubjetivos. Ou como indica Habermas, há uma colonização do mundo da vida pelas formas extremadas do mundo sistêmico. E no romance, o mundo sistêmico está em todo lugar, no trabalho, entre amigos e na família. A racionalização do mundo da vida invade o mundo privado, da intimidade. A relação existente no círculo de amizades da personagem e a esfera familiar é contaminada pela razão centrada no sujeito, ególatra e instrumental.


O mundo da personagem principal é o da reificação e sobrevalorização dos valores da técnica, da ciência em comunhão com o desenvolvimento do capitalismo. Toda a vida de Ilitich é uma vida de projeção: ter bom emprego, boa casa, caros objetos, elevado status e uma boa família. O sujeito em questão é engolfado pelos valores objetivos em detrimento da sua subjetividade, pensada como reflexão de si e do mundo a sua volta.


Em momento algum da obra Tolstoi constrói momentos de relações afetivas dos personagens. Até mesmo a relação de Ilitich com os filhos é ausente. Não há espaço para o coração. Todos os personagens aparentam um enquadramento impessoal, alheia aos sentimentos; à exceção de Gerássim, um empregado humilde da casa, que surge na parte final do romance.


É no desfecho final da obra que a personagem, após descobrir uma doença mal compreendida pela medicina da época que o levaria a morte, passaria a refletir sobre toda a sua vida. Com a simplicidade, afetividade e naturalidade do empregado Gerássim, que cuidara de Ilitch até o leito da morte, sente o personagem que sua existência não foi tão bem aproveitada, exceção feita a sua infância espontânea e inocente.


O protagonista teve uma vida artificial, programada, passiva. Ilitich percebeu que foi escravizado pela sociedade, e não fora senhor de si, como imaginara. Sua relação com os amigos, com a família, o trabalho, as convenções sociais parecera teatral. Só veio perceber isto quando estava doente. Não teve visita de amigos; sua esposa se mostrava perturbada com a sua doença; seus filhos eram ausentes; e, por fim, a relação dos médicos com ele foi de total impessoalidade, tal como ele se mostrava nas relações da esfera do trabalho.


É sofrendo com a morte, mais psicológica do que física, que a personagem compreendeu sua vida infeliz. E é no leito da morte que ele alcançou a liberdade. E liberto, ou consciente das amarras morais, sociais e psicológicas, que atravessaria boa parte de sua existência, Ilitich, enfim, pôde morrer em paz.

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