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O canto sedutor do fascismo


Ulysses and the Sirens de John William Waterhouse (1891).



Certa vez, li uma declaração do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em que afirmava que vivíamos “tempos estranhos, com perda de parâmetros, abandono a princípios, o certo passa pelo errado, o dito pelo não dito”. Se o ministro à época se referia à agonia vivida pelos males de nossa república, acredito ser possível estender essa perspectiva para um quadro mais geral. Mais do que nunca, vemos explicitamente manifestações de apoio a medidas autoritárias para resolver os males que nos afligem, como pedidos de intervenção militar e uma política de segurança pública que reze o mantra do “bandido bom é bandido morto” e pratique a execução como ação prioritária.


Embora a falta de ingenuidade não me permita crer que pensamentos deste tipo surgiram de agora, os aspectos que mais me impressiona são: a explicitação desse tipo de discurso, que muitas vezes vem acompanhado de preconceito, e a quantidade de pessoas que, dia após dia, em alguma medida, vai embarcando nessa onda, como se esse autoritarismo fosse algo latente ou simplesmente sedutor, racional, pragmático. Não pretendo fazer uma análise da psicologia social do brasileiro e, portanto, me deterei sobre o segundo aspecto. As constantes notícias dos escândalos de corrupção na política, da crise nos hospitais públicos que mais parecem açougues, da violência que não parece ter acabar, podem gerar uma sensação de impotência frente a tudo isso que mais do que o medo, nos passa a percepção de que por mais que nos esforcemos, podemos ser os próximos a encenar esse espetáculo de horror cotidiano.

E esse raciocínio pode ir mais longe: basta lembrar do que foi a campanha eleitoral de Donald Trump. Ainda que a inépcia de sua concorrente tenha ajudado, ele fundamentou sua plataforma política em meio a mentiras, discursos misóginos, preconceituosos e um nacionalismo protecionista. Para quem achava que era apenas blefe de campanha, o resultado está aí. E mais recentemente, tivemos a Marine Le Pen com um projeto político nacionalista próximo ao de Trump, mas que felizmente foi derrotado nas urnas. O que há de semelhante entre esses dois casos é franceses e americanos estão descontentes com as políticas econômicas arruinaram suas famílias, migração de refugiados e as tensões resultantes e o medo de ataques terroristas, fatores que impulsionam o aparecimento de uma onda reacionária que encontra do discurso do medo a sua interlocução.


Mas vamos voltar à nossa realidade e mais especificamente sobre o tema da violência. Quem vive em Salvador e utiliza o ônibus como meio principal de transporte sabe bem o que é ter de ficar alerta a todos que entram e a qualquer movimento estranho, com receio de ser vítima de um assalto. E mesmo quando “entocamos” o celular durante a viagem, isso pouco adiantará, porque em alguns casos não ter o aparelho para entregar não é uma opção. Não sei se é algo que acontece a todos, mas programar compromissos e lazer em função não do tempo de deslocamento, mas do risco que seu trajeto irá oferecer é algo que vejo como tristemente comum.

E para aqueles que têm o “conforto” de morar em condomínios – nossos feudos modernos – e contar com dispositivos de segurança, onde a própria infraestrutura de lazer já nos remete a inferência de que se toda a diversão possível está bem ali, é justamente por garantir um ambiente controlado e protegido do lado de fora dos muros – altos, monitorados, cercados e eletrificados. Ainda que utilizar o exemplo do medo da violência urbana torne o problema mais explícito, todos os episódios negativos que mencionei anteriormente exercem a capacidade de influenciar – e é isso que importa discutir aqui – as nossas preferências e opiniões.


Quando ouvimos relatos de assaltos e homicídios e nos lembramos do discurso que na época dos militares não existia essa “vagabundagem”, que bandido respeitava polícia e todos podiam sair na rua sem toda essa preocupação, talvez a notícia de linchamento de um estuprador ou o auto de resistência que culminou na morte de traficantes não nos pareça tão ruim assim. Afinal, situações extremas exigem medidas extremas e o mais importante é que a sociedade esteja protegida. Este exercício mental que criei, embora seja uma representação da realidade e não ela mesma em si, serve para exemplificar a manifestação cada vez mais comum de um pensamento enraizado na experiência cotidiana, que cada vez mais é simpático com a constatação de que soluções “enérgicas” precisam ser tomadas para garantir a paz e ordem social.


O mais chocante é o alcance desse tipo de pensamento. Escuto nos mais diferentes ambientes e com cada vez mais frequência, a aceitação irrefletida do extermínio de criminosos e da erradicação da corrupção política pela via dos tanques e fuzis. Na semana que o processo contra o presidente Temer foi arquivado, ouvi de mais de uma pessoa que, ao escapar da denúncia com o seu arquivamento, esse país só tinha jeito com “intervenção militar”. Todo esse pessimismo e ressentimento se encontra amplamente ancorado na nossa conjuntura sociopolítica: nossas instituições políticas não conseguem corresponder às nossas expectativas de boa parte da sociedade que, acuada, anseia por uma saída, seja ela qual for. Não é à toa, mesmo depois de vinte e um anos de regime militar, as forças armadas são as instituições em que os brasileiros mais confiam.

E para que não pensem que é realmente algo pontual, recuperem as imagens das grandes manifestações de 2013 e verão que, desde daquele momento, saiam da escuridão para a luz do dia as “vivandeiras alvoroçadas”, como disse Castelo Branco. Não precisam ir longe: vasculhem redes sociais afora e observem a quantidade de grupos simpatizantes do militarismo e percebam que essa parece ser uma realidade muito mais cruel do que se gostaria de desejar. E como toda ideia precisa de um portador, parte desse espectro obscuro encontra em Jair Bolsonaro sua encarnação. E é de se estarrecer que, embora nossa sociedade demonstre estar muito mais intolerante à corrupção do que já foi, há quem defenda a viabilidade de sua candidatura à presidência, enquanto se ignora o conteúdo de um discurso assentado no ódio e preconceito, que infelizmente parece retroalimentar uma quantidade espantosa de indivíduos ressentidos e igualmente odiosos preconceituosos, formando um monstro que espreita em sua jaula, ansioso por se libertar. No entanto, embora seja o exemplo mais notório, infelizmente parece que a cadela de Bertold Brecht pariu muito mais crias do que gostaríamos.


Enquanto vivenciamos cenas de guerra urbana cotidianamente – onde o Rio de janeiro, saqueado por uma quadrilha de dar inveja às personagens de Piratas do Caribe – onde diariamente pessoas são executadas, os serviços oferecidos pelo Estado sequer conseguem operar por falta de recursos e não conseguimos mais diferenciar as notícias de política das contidas na página policial, alguém que promete limpar o país da corrupção e agir de forma enérgica contra os “vagabundos” parece ocupar um dos termos de uma operação cujo resultado parece ser o pior possível.


Tal como o herói da Odisseia, não devemos nos deixar levar pela ilusão de que em razão de situações extremas como as que vivemos, práticas e pensamentos autoritários são cada vez mais aceitos, praticados e aplaudidos, por mais que o canto das sereias seja sedutor. Entregar as rédea das mudança a serem feitas no país para qualquer aventureiro ou bater na porta dos quartéis procurando salvação, é assumir nossa infantilidade política: nós sempre precisamos de um tutor para resolver nossas crises. Ainda que navegando em tempestades que inspiram medo em nossos corações e nos paralisam diante de sua fúria, devemos buscar a coragem e confiança na capacidade criadora da ação humana e apontar soluções que não nos levem à desagregação e ao ódio, rejeitando o sinistro e sedutor apelo fascista que insiste em ressoar no convés, mas que não nos levará a lugar algum que não seja ao naufrágio.

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