Joaquim Nabuco no Hotel Saint Petersburg. Arquivo: Fundação Joaquim Nabuco
O tema que anima esse texto não é os dos mais pacíficos de se discutir, no entanto, não poderia me furtar de discuti-lo aqui neste espaço. De saída, começo com uma afirmação: não é possível conceber o Brasil como uma obra que, ainda que pensada por elites arielistas[1] desde o seu início, se apresente sem a marca das mãos negras enluvadas pela escravidão. Da grande massa sequestrada das terras do além mar e de seus descendentes, deve enormemente a nossa nação pelo suor e sangue tomados à força.
Da relação resultante, seu infame peso foi, é e muito provavelmente será sentido pelas gerações que virão. Talvez, a presença do espectro nefasto que remonta o início do nosso laço colonial seja muito mais sutil e até mesmo perversa do que imaginamos.
A despeito de séculos do chamado “progresso” e do avanço da “civilização”, por vezes fica o questionamento se, em vez de trilharmos a dita marcha indelével para uma sociedade guiada plenamente pela razão, tal qual nos prometeu o movimento iluminista[2], parte de nós ainda opte pelo deleite no chafurde na mais pura ignorância suína. Bem, os ditos “supremacistas”[3] –que nada mais são senão filhotes raivosos da cadela do fascismo – estão aí para fundamentar a hesitação.
No entanto, não é sobre o racismo em específico que quero abordar e sim, das marcas que a escravidão enquanto instituição deixou em nosso país. Talvez tenha sido Joaquim Nabuco o primeiro a compreender que, mais do que simplesmente um laço entre senhor e cativo, a escravidão era um tipo de relação cujo espírito escapava desse eixo inicial: ela foi mais além e contaminou as relações entre os demais indivíduos, transformando nossas formas de agir e pensar. Ela saiu das lavouras e adentrou as casas-grandes, o comércio, a igreja, a política, as artes. Enfim, ela envolvia o país desde o império. Porém, não se deteve com a abolição, resistiu ao fim da monarquia e invadira a república. Nabuco não tinha dúvidas de que seria preciso uma grande ação política para reverter a obra feita pela escravidão no nosso país, o que levaria anos, inclusive. Porém, talvez nem o nosso ilustre pernambucano pudesse ter ideia de que, passados 107 anos da sua morte, ainda estaríamos tão impregnados pelo seu legado. Creio que ele não tinha noção da capacidade de resiliência que os traços mais obscuros desse nosso abominável legado.
De saída, creio que no Brasil não há elemento que guarde mais a mácula da escravidão do que as relações de trabalho, principalmente as realizadas no ambiente doméstico. Se desde a nossa formação o trabalho era visto como atividade associada aos escravos, observem o que era e infelizmente ainda é a figura da empregada “doméstica” em boa parte dos lares Brasil adentro. Responsável por limpar, cozinhar, cuidar dos filhos dos patrões, relegada ao “quartinho”, alcunha para o pequeno vão em que se resume seu mundo. Ela está ali, disponível a hora que for,caso seus patrões desejem. Mas calma, ela é benquista por todos, até ganha uma folga no domingo em que os donos da casa vão almoçar na casa dos pais. Pode até ganhar um vestido do patrão, que frequentemente dá o presente seguido de um inocente e maroto elogio quanto às formas da moça.
Mas falando em almoço, não se enganem: ela continua comendo na cozinha. Afinal, mesmo sobrando uma cadeira vazia à mesa, não é de bom tom que a dona da casa seja vista comendo junto com sua “menina que trabalha na casa". Aliás outro dia, a sua dona (ops, leia-se dona da casa) ficou furiosa porque a moça mencionou que iria trabalhar como caixa do supermercado e alugar uma casinha com o Valmir, seu namorado. Assim ela poderia trabalhar e estudar à noite. “Mas que absurdo? Você prefere sair dessa casa de quem te acolheu e deu tudo? Quanta ingratidão! ”.
Bem, talvez essa pequena história seja demais caricata. Provavelmente os mais céticos dirão que isto não passa elucubrações de uma mente fantasiosa. Mas para aqueles que me tomam por um escritor quixotesco, então reflitam sobre o que significa o quarto da empregada, se não um cômodo feito ao lado da cozinha e área de serviço, planejado para que alguém que more no mesmo lugar que trabalhe e não precise sequer usar o banheiro da família. Diferente de outros países no mundo, qual o fundamento que não nos obriga a ensacar nossas próprias compras no supermercado. Ou ainda, quando vamos às praças de alimentação dos shoppings centers para rir, tirar selfies e falar o mais alto que pudemos, quem recolhe as bandejas com nosso resto? Percebam, muito provavelmente essas relações podem prescindir do elemento racial, ainda que tenham nesse elemento o seu pecado original. Muda-se os atores e o cenário, o terror da peça não se altera.
A conclusão é que o triste diagnóstico de Nabuco esteja mais atual do que nunca. Parece que reproduzimos nos mais diferentes níveis e nos mais variados graus, uma relação de subordinação com quem nos presta qualquer tipo de serviço, que nem mesmo todo o processo de desenvolvimento social e econômico conseguiu apagar de todo. À despeito a luta encarniçada que travamos para acabar derrubar nossas próprias estátuas de confederados aqui, não creio que a obra da escravidão tenha finalmente chegado ao fim. Nesse pequeno espaço que me resta, gostaria de transcrever a música Noite dos Norte de Caetano Veloso, que foi retirada de um trecho de Massangana, capítulo do livro Minha Formação de Joaquim Nabuco.
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil;
Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país; e foi a que ele guardou;
Ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos;
Insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração;
Suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.
[1] referência a Ariel, personagem da peça de Shakespeare A Tempestade.
[2] corrente de pensamento surgida na Europa, que tinha como uma das suas principais características a concepção do homem enquanto ser dotado de razão, esta última como forma de progresso social.
[3] como são chamados os indivíduos que pertentem a movimentos que pregam a superioridade da "raça" branca sobre as demais, basicamente radicados nos Estados Unidos.