Integrantes do MBL durante a Marcha da Liberdade. Arquivo: Alagoas 24 horas (Crédito: EVARISTO SA via Getty Images)
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque constatou: a democracia no Brasil era um lamentável mal-entendido. Partindo do pressuposto que os regimes democráticos que conhecemos estão envoltos em uma amarração de direitos e garantias herdadas do liberalismo, então o “mal-entendido” pode ser aplicado também nessa corrente de pensamento em terras tupiniquins.
O liberalismo brasileiro oscilou no pensamento político entre a noção de “ideia fora do lugar” e de “corrente subterrânea”, como disse Raymundo Faoro. Para os que não concordam com a inexistência do liberalismo no Brasil, provavelmente o primeiro argumento contrário seja de que a reforma orientada para o mercado nos anos 90 – não por uma vocação atávica do governo FHC – seja a prova cabal que o liberalismo no país chegara para ficar. Ainda que se tome a corrente econômica do liberalismo como sua síntese, é patente que a defesa dos direitos do indivíduo, nas suas mais variadas dimensões, é uma tarefa a ser enfrentada neste país. Não obstante, é a liberdade e defesa do indivíduo o principal conectivo que ata no mesmo campo, todas as variações do pensamento liberal.
E foi com uma mistura que ceticismo e esperança que vi o Movimento Brasil Livre (MBL) despontar ainda em 2014, como uma organização da sociedade civil que apontava para novos rumos na sociedade brasileira, rumos esses claramente identificados com o fim do pior da nossa face ibérica, herança que infelizmente ainda não passada a limpo. Embora minha ingenuidade e otimismo já houvessem se esvaído nas leituras de Maquiavel e Kafka, entendia que o aparecimento de organizações da sociedade civil – sejam elas de qualquer matiz – era um sinal de que, apesar do clima ruim de polarização política pós-eleição, conseguiríamos organizar na sociedade um debate saudável em torno dos grandes dilemas que temos que enfrentar. Em suas propostas, é possível extrair até algumas propostas interessantes, que embora não sejam consenso atualmente, são importantes dentro do debate político e devem ser debatidas como qualquer outra.Com o passar do tempo, caí na real. O que pensava ser um vinho novo, era na verdade o vinagre do tipo mais azedo.
Pouco a pouco, o grupo se especializou em uma retórica essencialmente antipetista, articulando manifestações para engrossar o coro dos que queriam apear Dilma Rousseff do poder. Vá lá, afinal, o jogo é jogado. Não satisfeito, até uma “marcha pela liberdade” foi organizada pelo movimento, como se o próprio nome do evento por si só, já não fosse capaz de trazer à nossa memória, o ocaso da democracia em 64. Só que agora o MBL parece, não satisfeito com as pobres declarações no meio público, se acoplar de vez com uma pauta reacionária e com ar fascistoide, que resolveu virar árbitro da “moral da família brasileira”.
Episódios como o boicote à Exposição Queermuseum, as críticas ao MASP pela encenação que continha um homem nu, entre outros grunhidos típicos da burrice suína que abunda no país, só demonstram que não se trata de defender o legado de liberais como Meira Penna[1], mas sim “pegar a ponga” em ações apolíticas, por utilizarem da violência, física ou não, como forma de impor sua vontade aos demais e portanto, contra o pluralismo democrático, porque não respeita à diversidade que existe em nossa sociedade, tema precioso ao liberalismo[2]. Não entro no mérito se a exposição é boa ou ruim. Percepções assim são subjetivas e pessoais, logo não devem ser tomadas como absolutas. Em relação à acusação de crime de pedofilia, bastava ler o Estatuto da Criança e do Adolescente[3] antes de fazer proselitismo por aí. Não se tratava de manter o Brasil livre de nada, mas sim de mantê-lo atado à onda autoritária e moralista que surge de todos os lados.
Sob o manto da defesa das liberdades, o MBL só demonstra ser uma correia de transmissão de um campo que se chama de direita e sem qualquer pudor intelectual, se associa ao liberalismo. Correia pragmática, porque não é de hoje que se percebe a aproximação de seus integrantes com a política, surfando nesse nicho cultural regressista. E veja, meu caro leitor, esse movimento de impor a sua visão de mundo não é exclusivo desse campo: apenas para ficar em dois episódios que me vieram rapidamente à memória, as cenas de baixaria que ocorreram na UFPE e na UFBA só demonstram que o apreço ao debate e o respeito à opiniões divergentes é artigo escasso em todos os campos. Por ironia do destino, ambas ocorram no âmbito acadêmico, local onde supostamente se cultiva o pensar.
No fundo, não passam de filhotes raivosos da mesma cadela do fascismo. Portanto você aí que se acha um “liberal da porra”: que gosta de citar Mises e Friedman sem ter lido patavinas; que acha o liberalismo um barato e que Keynes era um comunista; se você por acaso você não se indignou quando vazaram conversas de presidentes, gosta de ver político preso ao arrepio da Constituição, anda patrulhando exposição e definindo o que é arte, que acha que bandido bom é bandido morto e presta homenagens ao “mito”, novo bezerro de ouro da direita, atenção: tire essa farda de liberal, porque no fundo você é um decalque de fascista.
[1] Para conhecer um pouco mais desse expoente do liberalismo no Brasil recente, clique aqui.
[2] Sobre o tema, recomento a leitura do bom artigo do antropólogo Carlos Henrique Cardoso A arte censurada: uma exposição encerrada no grito.
[3] O “crime de pedofilia” sequer existe em lei e é um conceito muito mais embasado na psicologia e psicanálise, embora apareça no mundo jurídico.