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Temer e os imigrantes venezuelanos: a democracia ignorada

Maria Garcia*


Refugiados venezuelanos procuram trabalho em Boa Vista, capital de Roraima, em outubro de 2017. Reuters/UNODC

Refugiados venezuelanos procuram trabalho em Boa Vista, capital de Roraima, em outubro de 2017. Reuters/UNODC



Um turbilhão político e emocional foi o ano de 2017, que deu continuidade ao governo de coalizão pós-impeachment e presenciou altos e baixos na política. Aos trancos e barrancos dos dias, uma notícia se mostrou tímida nas redes sociais e nos veículos impressos. Não é demérito, todavia, do seu conteúdo. Foi promulgada em maio a Lei de Migrações[1], um dispositivo que visaria mudar todo o entendimento do Estado em relação ao fenômeno migratório.


Antes dessa lei, o movimento e integração do imigrante eram disciplinados pelo Estatuto do Estrangeiro, uma norma da época da ditadura que incumbia ao migrante diversas restrições, como proibir participações em eventos políticos, livre associação e produção cultural sem a autorização do governo federal. A lei enquadrava o fenômeno da migração como questão de segurança nacional, e relegava possíveis demandas sociais e econômicas destes indivíduos para as discussões no Conselho Nacional de Imigração (Cnig) - órgão dinâmico, mas vinculado a ministérios de trabalho ou emprego. A Lei de Migração, demanda da sociedade civil organizada, já traz uma perspectiva humanista e compreende melhor as complexidades dos fluxos migratórios. Tem como princípios a não-discriminação, acolhida humanitária e regularização de indocumentados. Facilita o acesso ao visto para reunião familiar e cria um novo tipo, o humanitário, usado informalmente desde a chamada “diáspora haitiana” de 2010. Entende que o migrante é um ser de identidade transnacional, com liberdade para se expressar e, em muitos casos, socialmente vulnerável mesmo sem sofrer perseguição fundamentada ou sem que seus direitos universais tenham sido violados de maneira grave e generalizada – casos enquadrados no status de refugiado.


O clamor de brasileiros organizados para iluminar aquele indivíduo migrante sob outra coloração pode ter passado pelo crivo dos legisladores. Parece, contudo, que o poder Executivo chefiado por Michel Temer não recebeu o memorando. Vários caminhos poderiam ser oferecidos para revelar essa conveniente falta de interpretação da lei por parte do atual governo federal. A imigração venezuelana, nesse caso, torna-se um perfeito estudo de caso.


Não é novidade para os mais atentos às notícias que as consequências da crise econômica do governo venezuelano já não mais se mantêm nas fronteiras. O que é comum em qualquer desordem pública com apelos emergenciais é a migração de uma grande massa de pessoas em busca de mais estabilidade financeira, emocional e familiar. E os venezuelanos não são exceção. Em dezembro do ano passado, a Colômbia já recebia 470 mil deles[2]. Já aqui no Brasil, mais de 18 mil venezuelanos cruzaram a fronteira do estado apenas em 2018 e o número de pedidos de refúgio registrados pela Polícia Federal foi de 17.130 em 2017[3]. O pedido de refúgio é um dispositivo comumente utilizado (mas não ideal) do imigrante de garantir burocraticamente o mínimo para se estabelecer no país, a exemplo de expedição de CPF e carteira de trabalho, até que seu processo seja julgado pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Além disso, pelo princípio de non-refoulement, ele não pode ser enviado de volta pro seu país de origem enquanto solicitante de refúgio.


O resultado deste “êxodo venezuelano”, cujos destinos variam entre países como Espanha, Panamá e Estados Unidos, foi consequência de uma política econômica rentista por anos estabelecida no país e a infortuna queda de preços dos barris de petróleo em 2014 - principal commodity desde que Hugo Chávez assumira a chefia[4]. Consequentemente, a hiperinflação tomou conta da economia e o país se viu desabastecido de produtos básicos e medicamentos[5]. Essa é a justificativa básica e breve da emigração em massa. A depender de quem interpreta, entra na equação questões políticas e a configuração de um Estado que Nicolas Maduro tenha formulado.


O trajeto de grande parte dos venezuelanos prevê a cidade de Pacaraima, em Roraima, como destino final no território brasileiro. A pedidos das autoridades locais roraimenses que apontavam para um possível colapso dos serviços públicos na região, uma comitiva do governo federal voou até o estado para entender a situação no início do mês de fevereiro. O grupo envolvia três membros além do próprio Michel Temer: os ministros da Justiça, Torquato Jardim; da Defesa, Raul Jungmann (na época); e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, Sérgio Etchegoyen. Tais administradores conversaram com autoridades roraimenses a exemplo da governadora Suely Campos, que não poupava o governo federal de suas preocupações relacionadas à saúde pública em “colapso”, ingerência do fluxo intenso, orçamento não compatível para as demandas e o suposto aliciamento de venezuelanos ao tráfico de drogas quando já dentro do território brasileiro. Temer prometeu publicar uma Medida Provisória (MP) – o que ele fez, depois de três dias, decretando estado de emergência social – e criar um comitê de trabalho para discutir a situação.


O que estranha na escolha da equipe federal foi como ela esteve centrada na área de Defesa Nacional, mesmo que a imigração de venezuelanos não esteja necessariamente relacionada a isso. Etchegoyen é responsável por realizar o assessoramento pessoal em assuntos militares e de segurança dentre suas principais funções, e a presença do ministério da Justiça estaria mais palatável se lá estivesse um representante do Conare. Já Jungmann seria o próprio pensamento da Defesa e da gerência do Exército, que é uma entidade criada e mantida para proteger o território brasileiro em face de uma eventual guerra com outros países, mantendo a integração do Estado-Nação[6]. Militares do Exército são treinados para matar e agir como se estivessem em guerra, não para monitorar e fiscalizar fluxos de indivíduos desarmados, vulneráveis e membros da sociedade civil. E são essas tropas que engrossam as fronteiras quando intensificado o fluxo migratório – cujo pelotão ampliou de 100 para 200 na região de Pacaraima este ano –, mesmo que a Polícia Federal já esteja à frente nos postos de fiscalização para assegurar proteção do Estado em caso de tráfico de narcóticos ou de esquema de coiotes.


É possível que a presença de Etchegoyen fosse necessária ao tratar de informações úteis para que a inteligência federal gerisse o momento. Se o estado de Roraima sofre de problemas nos serviços públicos de Saúde e Educação, todavia, os ministros destas pastas ou representantes deveriam também participar da comitiva e articular ações com as secretarias municipais e estadual a fim de traçar estratégias emergenciais com o mínimo impacto orçamentário. O que faz um ministério ser representado na comitiva e outro não? Não é mera conveniência ou disponibilidade. Traduz exatamente o que o governo federal pensa de uma crise tratada midiaticamente como humanitária: uma ameaça ao território nacional e aos cidadãos brasileiros. O próprio Temer poupou a população de ler esse pensamento nas entrelinhas.


Segundo o presidente, o objetivo é “proteger a integralidade territorial e os habitantes de Roraima”, reforçando a preocupação da governadora roraimense de que os venezuelanos estariam “tirando o emprego” da população nortista[7]. Essas falas escancaram já uma retórica conhecida por muitos de traçar uma linha entre nós (os nacionais) e eles (os estrangeiros que ameaçam a nossa integração). O conhecido discurso de muitos políticos conservadores na Europa[8] é transferido ao falatório de Temer. A presidência, neste caso, tem um tom “securitário” no tratamento com o imigrante. A securitização é o ato de tratar alguma política para fins de segurança nacional, acima dos direitos humanos. Tudo estaria muito bem (ou não) se isso não ferisse os princípios da nova Lei de Migração. Entre eles, estão a “não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional”, “acolhida humanitária” e, principalmente, “universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”.


Ao propor um tipo de grupo de trabalho a fim de pensar soluções para os problemas administrativos de Roraima diante da surpresa migratória, Michel Temer se esquece (ou não) de duas questões: primeiro seria a de convidar as autoridades roraimenses para participar de encontros do CNig, um órgão já organizado para este fim com a participação de membros da sociedade civil organizada. O próprio CNig, já disciplinado para pensar na importância da acolhida humanitária, chegou em fevereiro de 2017 a baixar uma Resolução Normativa para possibilitar a concessão de residência temporária, pelo prazo de até dois anos aos venezuelanos e demais cidadãos de países fronteiriços[9]. Por falta de conhecimento, contudo, poucos foram os nacionais da Venezuela que se beneficiaram deste dispositivo em comparação ao total de migrados.


O segundo ponto é não considerar este caso como calamitoso para o país, a fim de abrir certas excepcionalidades políticas. O Brasil há pouco tempo já enfrentou algo parecido (a diáspora haitiana após o terremoto de 2010 em Porto Príncipe, outrora citado neste artigo, já causou uma média de 1,5 mil haitianos entrando por dia na fronteira de Brasiléia, no Acre). Sabendo que fomos estabelecidos como um país de destino de fluxos migratórios com fortes elementos humanitários, pelo menos em face das crises regionais, é necessário que o governo federal já tenha na gaveta um planejamento capaz de lidar com casos similares sem se utilizar de medidas “efêmeras”, como controlar a fronteira com uso militar e publicações de MPs. Caso houvesse uma homogeneidade entre políticas com o governo anterior (que também não lidou bem com sua situação migratória), ou trocas de experiências prévias com governos do Chade e da Turquia (países também acolhedores de fluxos migratórios regionais), a urgência não seria necessária.


Os argumentos acima de longe se tratam de todas as variáveis que envolvem a questão do fluxo migratório de venezuelanos no Brasil. Contudo, é perceptível como Michel Temer quer midiaticamente retratá-lo e como isso difere totalmente do trato humano defendido pela própria população, principalmente daqueles conscientes dos direitos dos migrantes. O quanto isso agrava os vários casos de xenofobia de brasileiros contra venezuelanos, sinceramente não tenho conhecimento. Contudo, revela que o Brasil não deixou suas raízes autoritárias de tempos passados. Infelizmente, a promulgação da lei não é o grito de vitória. É somente um começo de muita luta para o estabelecimento de uma sociedade mais afim dos direitos humanos universais.





* Jornalista e mestranda do programa de Relações Internacionais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).



[1] Lei 13.445 de Maio de 2017. Constituição da República Federativa do Brasil


[2] IRIN, Colombia's Venezuela problem, 1 December 2017, available at: http://www.refworld.org/docid/5a2540394.html [accessed 26 February 2018]


[3] COSTA, Emily. Força Nacional começa a atuar na fronteira entre Brasil e Venezuela. G1. 19 de fevereiro de 2008. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/forca-nacional-comeca-a-atuar-na-fronteira-entre-brasil-e-venezuela.ghtml> Último acesso: 26 de fevereiro de 2018.


[4] PADRÓN, Alejandro. La crisis económica venezolana y el control de cambio. Revista Economía, nº 10 (Univesidad de Los Andes), 2014.


[5] CASTRO, Maolis. Maduro pede ajuda à ONU contra escassez de medicamentos. El País Brasil, mar. 2017, Seção Internacional. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/25/internacional/1490402446_848555.html>. Acesso em: 25 jul. 2017.


[6] Na literatura mais básica sobre o assunto, o Estado-Nação depende de três elementos para a sua composição: território, povo (nacional) e um aparelho estatal. A inviolabilidade do território é missão da das Forças Armadas.


[7] KAFRUNI, Simone. Venezuelanos: saiba como o governo irá disciplinar imigração no Brasil. Correio Braziliense. 13 de fevereiro de 2018. Disponível em <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/02/13/interna_politica,659537/venezuelanos-saiba-como-o-governo-ira-disciplinar-imigracao-no-brasil.shtml>. Acesso em 26 de fevereiro de 2018


[8] Ver: EXAME. Marine Le Pen promete congelar vistos para imigrantes na França. Estadão Conteúdo. 18 de abril de 2017. Disponível em < https://exame.abril.com.br/mundo/marine-le-pen-promete-congelar-vistos-para-imigrantes-na-franca/>. Acesso em: 26 de fevereiro de 2018


[9] BRASIL. Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Resolução Normativa nº 126, de 2017. Dispõe sobre a concessão de residência temporária a nacional de país fronteiriço. Diário Oficial da União, CNIg, Brasília, DF, 3 mar 2017. Seção 1, p. 88.

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