O assassinato de Marielle Franco, em 15 de março de 2018, no Rio de Janeiro, é reflexo de uma sociedade que exacerba impulsos destrutivos. Os dados alarmantes sobre o Brasil, aponta que, em 2016, o país alcançou o número absurdo de mortes violentas intencionais, como homicídios e latrocínios, em toda a sua história: 61.619 mortes. 30 anos de Democracia fracassaram, no que diz respeito a criminalidade. Esse ponto deve ser encarado e soluções devem ser apresentadas.
Meu objetivo não é falar das soluções políticas, porque são múltiplos os caminhos que podem ser perseguidos na construção de uma ordem social menos conflituosa. Quero falar da desumanidade. Fui estimulado! Permitam-me um textículo mais filosófico.
A desumanidade não é uma característica de uma classe social, cor, etnia, sexo, gênero, religião, filosofia, partido político ou ideologia. A desumanidade é um traço existente, sim, em todos. Mas, por quê? Pergunta o leitor. Por que temos um lobo da estepe, um subsolo sombrio que nos ronda? Não pretendo responder a origem de nossos impulsos vis. Mas desejo aproveitar a questão para além da repercussão desta semana.
Os brasileiros se depararam com um boom de informações, notícias e opiniões que versavam sobre o lamentável assassinato de Marielle. Há múltiplos sentimentos misturados, no fervor da intemperança do desequilíbrio humano: amor e ódio envolvidos. Em termos práticos, abrasileirados, li e escutei: se X apoia a intervenção do governo Federal no Rio de Janeiro, compactou, de uma forma ou de outra, com o crime, portanto é insensato; se Y é a favor do governo Temer é parte do especto negativo que ronda o país; se Z apoia a segurança em detrimento da educação e cultura é porque é alienado e imbecil. Ainda, acusações duvidosas e interesseiras acometidas a Marielle, de ter ligação com o tráfico, ou de ser contra a polícia carioca.
Despautérios de todos os tipos! Poderia citar vários joguetes enquadrando pessoas dentro de esquemas dualistas; acusações que tendem a separar cada vez mais a sociedade. Cria-se um fosso entre “Nós e Eles”. No fundo, esquecemos que sentimentos de barbárie é comum a todos! Mas, tendemos a terceirizar a desgraça. É por isso que a luta nossa de cada dia é por atrofiar (aprender a atrofiar não é negar), acredito, tais sentimentos de cisão, a favor de comportamentos mais sublimados. Senão ficamos atados nas palavras de Macbeth, Ato III, Cena II: "Só o mal pode fazer o mal crescer".
É visível um clima de desprezo, raiva, intolerância, inimizade. São sentimentos destrutivos! Partindo desse ponto, existe uma questão deixada de lado: a empatia. Ocultamos a capacidade de nos colocar no lugar do outro. Olhar o humano desprovido de rótulos. Humano na sua forma nua. Desvelada. Sem adjetivos!!!
Leitores, estamos distantes de sermos espíritos mais elevados. A humanização é uma atitude capaz de libertar das frivolidades passionais, da efemeridade dos impulsos ou das afeções cegas, e pode nos tornar mais conscientes das presas históricas fissionais. Uma tomada de consciência que pode nos impedir a agir, mecanicamente, por apetites lúbricos. A eterna vigilância, que Espinoza chama de liberdade.
O problema extrapola o nosso país, é histórico e ao mesmo tempo ontológico: a exacerbação do impulso de morte, da desagregação, da insensibilidade de estar ao lado do outro. Quando nos deparamos com uma questão tão profunda, devemos pensar que a sociedade só faz sentido se aprendermos a conviver uns com outros. Questão tipicamente aristotélica: nos tornamos humanos com interações humanas. Todavia, não esqueçamos de ter um momento a sós, é importante.
Há, sem dúvida, uma comoção pela morte de Marielle, ao menos para aqueles que se importam com vidas ceifadas. Mas, esse sentimento é misturado com um senso equivocado à determinadas pessoas: "só são emoções verdadeiras de comoção dentro de determinados rótulos sociais". Eis aí o grande problema: não podemos colocar, aprioristicamente, cascas superficiais para definir quem pode expressar sentimentos. Em outros termos, devemos evitar sobrepor as lógicas conceituais à experiência vivida. Crítica que pode ser localizada no existencialismo de Soren Kierkegaard, se contrapondo ao racionalismo hegeliano, da subordinação da realidade ao conceito, ou da subjetividade à objetividade.
É necessário se libertar de um modo tosco e simplista de enxergar absolutamente tudo a partir de letreiros! O sentimento humano é, no fundo, subjetivo. Uma experiência particular. Quando racionalizamos as pessoas, a sociedade, em esquemas conceituais, estamos falando de hipóteses - nunca verdadeiras - no campo científico, de aproximação com o real! Jamais a união entre conceito e realidade!!! O problema é tender a enxergar o outro como objeto. Nas palavras do filósofo dinamarquês, Kierkegaard:
"Permanecer no pecado é pior do que cada pecado isolado, é o pecado por excelência. E é nesse sentido, com efeito, que permanecer no pecado é continuar o pecado, é o novo pecado".
Nobilíssimos leitores, considerar o humano como um fim em si mesmo é sinal de superioridade moral. Certamente um grande esforço, necessário! É seguir a máxima lei de ouro: faz com outros aquilo que gostaria que fizessem contigo. À exceção, talvez, de casos patológicos, a capacidade de amar, tolerar, solidarizar, respeitar é comum a todos.
Até a próxima!
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https://oglobo.globo.com/rio/marielle-franco-que-se-sabe-ate-agora-sobre-morte-da-vereadora-de-seu-motorista-22494512
KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. São Paulo: Editora Unesp, 2010