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O Mal Estar da Democracia

Observando o cenário político e eleitoral no Brasil e no mundo, pretendo desenvolver uma breve reflexão sobre as motivações antidemocráticas contemporâneas. Aproveito esta introdução para alertar que o momento atual faz uma triste apologia à banalização da informação e produz um reducionismo do conhecimento. O Soteroprosa é um espaço onde é possível avançar. Boa leitura!


Começo falando do mais geral. A Democracia, resumidamente, é o aumento da igualdade, uma partilha maior do poder. Ela nasce restrita em suas origens, porque poucos eram os cidadãos, por isso pode-se chamar de Democracia oligárquica. A Democracia, vista como um processo, não pára de avançar, e hoje a literatura chama-a de Era da Democracia Social, voltada a uma maior participação, pois além de garantir o sufrágio (democracia política) e os direitos civis , ela também buscar diminuir as desigualdades sociais, democratizando a própria sociedade.


A Democracia atual também está muito atrelada à Carta aos Direitos Humanos (DHs), que coloca, idealmente, em pé de igualdade todos os indivíduos, independentemente da questão econômica, de status, sexo, gênero, cor, cultura, escolaridade. Os DHs têm uma origem filosófica, que remonta ao Movimento Humanista, colocando o sujeito como referência moral, por excelência, na busca da melhor forma de organizar a sociedade. Ontologicamente, o sujeito moderno ocidental foi arrancado de uma hierarquia natural, como numa visão ético-cosmológico-teocêntrico dos antigos, e posto num pedestal à parte, superior e invencível.


No Brasil, a redemocratização instalada a 33 anos atrás, prometeu integrar a sociedade, diminuindo privilégios concebidos a determinados grupos e classes, o que significa também uma diminuição das desigualdades em diversos níveis. Foi uma tentativa de avançar frente à regimes autoritários que restringiam a participação do cidadão nos negócios públicos, nos direitos políticos e civis.


Pois bem, ao chegar ao século XXI, vive-se ainda a Era dos privilégios, no qual alguns indivíduos são mais iguais do que outros, possuem muito mais capital social, político e econômico, para usar a nomenclatura do sociólogo francês, Pierre Bourdieu. Dito isto, a Democracia ainda não eliminou, entre várias promessas, o que Noberto Bobbio, em O Futuro da Democracia, chama de privilégios das oligarquias. As vantagens continuam existindo em um Estado Democrático de Direito, como, por exemplo, no caso brasileiro, o foro privilegiado ou mesmo amolecimento das penas à determinados estratos sociais. Se esses privilégios aumentaram no Brasil, a partir da Constituição cidadã democrática de 1988, é digno de pesquisas mais consistentes.


Ainda quanto à questão dos privilégios de alguns membros, Charles Tilly, na sua obra Democracia [1], traz sete pontos fundamentais que caracteriza o favorecimento, e portanto, a desdemocratização: 1 - não participação das negociações democráticas; 2 -a criação de relações com agentes dos estados que gerem benefícios; 3 - proteção das onerosas obrigações políticas; 4 - intervenção diretamente na disposição dos recursos do Estado; 5 - o uso do Estado para extrair vantagens das relações desiguais com atores não estatais; 6- usar influência pessoal sobre o Estado para explorar e excluir mais categorias subordinadas e 7- tornar o regime ainda mais distante de uma consulta ampla, igualitária, protegida e mutualmente vinculante.


Outro ponto de uma promessa não cumprida na Democracia é a fracassada eliminação da apatia política, o que na prática seria uma educação voltada para a democratização da sociedade, participação política, luta pelos direitos e fiscalização às ações dos representantes. O que tem ocorrido no Brasil, e em outros países, é que o cidadão tem sido reduzido a consumidor, que deseja absorver tudo que pode. Entrementes, o cidadão tem sido reduzido ao um animal, que luta por autopreservação, desejoso de ser protegido dos seus pares, potencialmente perigoso - um retorno ao humano hobbesiano - que é tentando a destruir o outro, sendo o homem o lobo do homem. Em outras palavras, o cidadão que vive na Democracia, em uma sociedade capitalista (que sobrevive pelo desejo humano do consumo desenfreado) é reduzido ao homem-animal, que, em sua natureza, preza pelo aumento do prazer e diminuição da dor.


Para os que atacam a Democracia, ou que tendem a repudiá-la por ser demasiada livre demais, enxergam que ela deveria cumprir o básico: dar segurança ao cidadão, favorecer o consumo, dando possibilidade para que todos trabalhem (o trabalho possibilita o consumo e o bem-estar). Acreditam, aqueles que sequer imaginam uma Democracia reduzida, que um Estado mais autoritário é melhor, pois menos direitos aos cidadãos é mais vantajoso do que dar direito a todos, igualmente, como defende a Carta aos Direitos Humanos ou no Artigo 5° da Constituição Brasileira, os chamados Direitos Fundamentais. Neste último ponto, é melhor ter segurança e bem-estar (que quer dizer garantir também o ganha pão para usufluir dos recursos disponíveis) do que conceder demandas infindáveis. A restrição de demandas favorece uma sociedade menos conflituosa. Ou para usar a expressão do candidato a presidência, Jair Bolsonaro, quando fala da questão do trabalho “Aos poucos, a população vai entendendo que é melhor menos direitos e [mais]emprego do que todos os direitos e desemprego”.


Avanço mais um degrau, siga comigo. Me deterei na questão da violência. Esta, atualmente, tem sido muito associada às drogas, sendo uma preocupação muito grande para a sobrevivência da sociedade brasileira. Apontam, os que olham desconfiados para a Democracia, que a redemocratização do país não conseguiu resolver o problema da violência, e até pirou. E por quê? Para eles, ela estaria muito associada à fraqueza do Estado Democrático de Direito no combate ao tráfico de drogas, na entrada de armas nas fronteiras do país e dentro dos estados, e por facilitar a soltura de bandidos. Ainda, alega-se que o sistema judiciário brasileiro facilita a vida do infrator, que tem direitos demais resguardados, inclusive a políticos, que possuem muitas regalias.


A acusação acima é de que os chamados DHs é um dos responsáveis pela banalização das violações. Como dizem: “os ladrões cometem crimes sabendo que serão resguardados pelos DHs”. O aumento das distorções sociais seria reflexo de uma Constituição que permite a um infrator todos os direitos de proteção do Estado. Vale ressaltar um ponto interessante, de que o pensamento antidemocrático acusa o chamado auxilio reclusão, pois, dizem que beneficia “família de ladrão”, neste caso, de origem pobre. No entanto, é preciso ter mais cautela a este ponto, pois o Artigo 201, do capítulo relativo a Previdência Social, deixa bem claro que tal auxílio tem uma lógica, como aponta o próprio portal do INSS “ De modo geral, o Auxílio-Reclusão tem o objetivo de assegurar a manutenção e sobrevivência da família do segurado de baixa renda que contribuiu para o INSS durante sua vida laboral e, que assim, gerou o direito de ter sua família amparada em caso de reclusão, conforme assegurado pela legislação previdenciária”. É dever do Estado amparar famílias de presos que contribuíram, direta ou indiretamente , com as contas públicas.


A reflexão dos parágrafos anteriores é de que para muitos eleitores/cidadãos, a igualdade de direitos é algo negativo, pois quem comete atos ilícitos não deve ser tratado como pessoa de dignidade, mas como um ser menor, que ao cometer uma barbárie contra a moral deve ser anulada de qualquer direito, até de proteção. Filosoficamente falando, é contrário à concepção do humano como centro, superior, fim em si mesmo, numa visão iluminista de progresso moral. O ser humano, aqui, na visão antidemocrática, deve ser inferior à comunidade, ancorando-se numa concepção de consciência coletiva. Por isso a máxima “bandido bom é bandido morto”. O bandido morto é melhor para a coesão social, porque é um a menos na perturbação da ordem, e, para alguns, é melhor mesmo que haja pena de morte, como existe em alguns países democráticos (o que é uma problema comparada com os DHs). “Bandido deve mesmo ser reduzido a nada estando preso, sem regalias, e sem respaldos constitucionais”. Eis a aniquilação da igualdade!


Alguns pontos-chave da Carta de DHs, que é espelho para as Constituições Democráticas no mundo, deve ser retomada. Artigo 1°: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. O artigo é bem objetivo em colocar o ser humano no mesmo patamar, independente de origem, sexo, gênero, cor etc, porque todos são dotados de razão, o que caracteriza a humanidade. Aqui, vale dizer que alguns marxistas não vão aprovar isto, pois a propriedade privada não foi abolida, a desigualdade não desparece nesse ponto, e os direitos humanos falam de um humano genérico (discussão para outro texto).


O Artigo 3° dos DHs: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Está muito claro que o indivíduo aqui é portador de dignidade moral e direitos. Mais ainda: mesmo que ele tenha cometido atos imprudentes e condenado por causa do crime, deverá o Estado protegê-lo, garantir a vida, algo que está ancorado legalmente. Artigo 5°: “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. O artigo informa que, não é porque você cometeu crimes que deverá ser tratado como uma coisa menor, pois qualquer um pode ser corrigível, pode ressocializar-se, porque possui a capacidade de racionalmente (exceção feita a casos psicológicos irreversíveis) arrepender-se dos atos vis e voltar ao seio da comunidade.


O cenário das Democracias ocidentais ainda carrega consigo a crítica dos conservadores à excessiva desconstrução de hierarquias e valores tradicionais - que davam maior coesão social, mesmo pautada em práticas não refletidas, guiadas pelo hábito - que permitem uma maior margem para a liberdade, o que José Ortega y Gasset vai chamar de rebelião das massas.


Caminhando para o fim. Abstraindo um pouco além, acredito que a melhor forma de entender toda a onda antidemocrática no Brasil e no mundo, é avaliar em que medida as promessas do humanismo tem sido falhas, pois se o problema for o ideal democrático então todos estão mesmo fadados a não encontrarem no ser humano, no próximo, um fim desejável, um nós, algo que nos conecte, igualmente, sem diferenças substanciais, como haviam elaborado os pensadores modernos.


Assim, nobilíssimos leitores, é preciso avançar em um ponto que já venho defendendo em outros textos, que o humanismo por si só não se sustenta, não foi e não é suficiente para ancorar a todos. É preciso encontrar uma dimensão mais ampla, mais cosmológica, para usar um termo estoico, não pautada num modelo de religião ou em algum Deus específico, ou um tipo ideal de ser humano, que rege a ordem social; nem mesmo um segundo humanismo, proposto pelo filósofo francês Luc Ferry, que fala do amor encarnado no outro. É necessário buscar uma dimensão que conecte não só humanos, mas que inclua a própria natureza, numa visão mais ecossistêmica, logo menos raciocentrista.


Até a próxima.


[1] TILLY, Charles. Democracia. Petrólis, RJ: Vozes, 2013.


Fonte: https://www.alferes20.net/news/humanismo-maconico-humanismo-ou-doutrina-implicita-da-maconaria/

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