top of page

O joio e o trigo


Estudantes colocaram uma faixa com a palavra 'censurado' na fachada da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. — Foto: Fábio Motta/Estadão Conteúdo

Quando vamos “catar” o feijão, mesmo sem saber, colocamos em prática o ditado de “separar o joio do trigo”, que nada mais é do que, ao fazer um julgamento qualquer, distinguir o que não presta e é ruim (joio), daquilo que é bom e nos serve (trigo), evitando que se trate coisas distintas como se fossem a mesma coisa. Por que estou falando disso? Paciência, eu explico.


Instituições públicas de ensino superior em todo o país foram alvos de operações da Justiça Eleitoral, que visavam coibir a utilização irregular do espaço universitário para divulgação de material de conteúdo político-partidário. Universidades em 9 estados receberam a “visita” de agentes federais, oficiais de justiça e policiais militares.


Bem, duvido que haja alguém, principalmente os que levam a sério o que a palavra “público” significa, que concorde que espaços custeados com dinheiro dos contribuintes sendo usados como palanque eleitoral. Quem frequenta as universidades públicas sabe muito bem que grande parte do patrimônio físico está devidamente demarcado por frases e palavras de ordem, que fazem parte do repertório da esquerda porta-voz de tudo que é bom e belo no mundo.


No fim das contas, quem resolve pichar seja lá o que for em prédios universitários sem qualquer tipo de autorização oficial, não está fazendo menos do que praticar um patrimonialismo “cool” e “engajado”, afinal, se a causa é nobre, esta autoriza a se fazer o que quiser, onde quiser. A meu ver, beira o ridículo, mas são apenas impressões de um conservador aborrecido.


Mas o que aconteceu nessa semana em algumas das universidades, nem de perto se assemelha à aplicação da lei, senão vejamos. A Lei 9.504/1997, no seu artigo 24, veda a utilização do espaço das universidades públicas e como disse Arnaldo César Coelho (esse mesmo que, quando árbitro, operou meu Bahia na Libertadores de 89. Ok, encerro aqui meu protesto), a regra é clara. No entanto, a Excelentíssima juíza Maria Aparecida da Costa Barros (TRE – RJ) poderia explicar o porquê do diretor da faculdade de direito da Universidade Federal Fluminense, Wilson Madeira Filho, ter que retirar uma faixa com os dizeres “Direito UFF AntiFascista”, sob a pena de prisão? Por acaso há algum partido ou candidato fascista concorrendo e eu não sei? Mas antes que prosseguir, permitam-me um aparte. Já retomo o raciocínio.


Noves fora o direito assegurado de livre expressão, a utilização do termo “fascismo” para se referir particularmente ao candidato Jair Bolsonaro é a tática estéril da retórica da esquerda. Não é de hoje que tudo o que não agrada parte da fração hegemônica desse campo político é empurrado na vala comum da alcunha de “fascista”. Assim, é fascista quem é contra as cotas, quem é a favor de cortes de gastos públicos e mais recentemente, quem apoiou o – legítimo – processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff ou quem votou no obtuso capitão reformado. No fim das contas, percebe-se a lógica do “nós e eles” que anima retórica.


O fascismo é um conceito historicamente datado, que aconteceu em um determinado contexto histórico e com determinadas características, o que não nos autoriza a cometer esse anacronismo vulgar para compreender a nossa realidade. Bolsonaro e o movimento que ele representa não precisam ser fascistas para representar o que há de mais reacionário, medíocre e incivilizado em nosso tempo.


Não se trata de simplesmente saber quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha, mas de usar a responsabilidade intelectual – rarefeita no atacado e subsumida ao proselitismo revolucionário meia-boca – e passar a compreender as coisas como elas são e quem sabe, apontar possibilidades de saída. Chamar Bolsonaro e seus eleitores assim pode até ser algo que caia bem na retórica beligerante, mas impede a compreensão do que ocorre de fato e ainda interdita a tentativa de diálogo com quem, por razões que não acompanham o discurso odiento, decidiu votar no 17. É grosseiro supor que existem 49.276.990 de fascistas raivosos. Parte desse eleitorado precisa ser compreendido e reconquistado para o campo democrático e reformista. Dito isto, encerro meu aparte e retomo o raciocínio.


Na Paraíba, uma atividade foi interrompida e a professora foi questionada sobre o conteúdo exibido no filme. Já na Universidade Federal da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul, a Justiça ordenou a interrupção de uma aula pública sobre fascismo na quinta-feira. Saindo rapidamente do mérito da questão, um simples ofício às universidades não bastava? Nos dois casos, há uma clara violação à liberdade de ensino, aprendizado e pluralidade de ideias, contidos no inciso I do artigo 206 da Constituição, bem como a autonomia didático-científica, artigo 207 da mesma Carta.


Ainda que considere um equívoco tratar a situação atual como fascista, não se pode simplesmente coibir manifestações e atos como os que citei, ainda que tente se resguardar na letra da lei, silenciou a manifestação de opiniões. Para fazer cumprir o ordenamento jurídico, cometeu-se algo que só pode ser tolerado nas piores ditaduras e em uma época onde preguiça e oportunismo intelectual imperam, é preciso chamar as coisas pelo nome: o que ocorreu nos casos que citei foi censura. Isto mesmo, censura, o modus operandi dos piores regimes políticos.


Desde a vergonhosa e autoritária Operação Ouvidos Moucos e o triste fim do saudoso reitor Cancellier de Olivo, as universidades estão se tornando presa fácil de decisões judiciais com claro viés arbitrário. Cancellier foi preso, algemado e proibido de entrar na universidade a que dedicou toda a vida. Um ano se passou e a única consequência prática do caso é a intimação de professores para explicar críticas públicas feitas à Polícia Federal. A delegada que comandou a operação foi transferida para outro estado e inquérito não chegou a conclusão alguma.


Com efeito, não irei cometer o erro grosseiro de afirmar, de antemão, que todos os casos apurados são atos de censura. Mas com a devida vênia, há um continente de diferença entre apreender uma faixa com “Em defesa da universidade, agora é Haddad” (Universidade Federal de Uberlândia) e interromper atividades acadêmicas. Por sorte, a ministra Rosa Weber já se prontificou a apurar “possíveis abusos”. Para os niilistas institucionais, gostaria de lembrar que o coronel da reserva que a ameaçou a própria Rosa Weber, a pedido do exército, é investigado e agora dorme de tornozeleira eletrônica. As instituições funcionam e mais do que nunca, os excessos ocorridos deverão ser apurados e punidos conforme está previsto no ordenamento jurídico.


A garantia da autonomia da universidade enquanto espaço para a livre circulação de ideias e pluralidade, não é apenas uma norma constitucional, mas a própria essência da mesma. Qualquer um que ameace esse princípio deverá ser combatido com a vigor que a lei determina e é um dever de todos nós defendermos sabiamente o espaço acadêmico contra esses ataques de quem usa o aparato estatal para interesses não republicanos.


Por fim, como fez o Dom Casmurro ao escrever suas memórias e assim atar as duas pontas da vida, uno agora as duas pontas do texto. Relembrando a parábola bíblica (Mateus 13:24-46), Jesus nos ensina que se deve ter cautela ao retirar o que é nocivo, com o risco de se eliminar o que é virtuoso com ele, algo que os casos acima parecem não ter feito. Sob hipótese alguma o livre pensamento pode ser ceifado, gostemos ou não dele. Assim, é dever nosso cuidar para que nossos “campos de trigo” se mantenham livres desses ceifadores porras-loucas.

10 visualizações0 comentário
bottom of page