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A ESQUIZOFRENIA NO PALCO: O teatro, O corpo e O personagem

Foto do escritor: Thiago Araujo PinhoThiago Araujo Pinho



“O Santo Inquérito” é uma obra do dramaturgo soterapolitano Dias Gomes, dirigida aqui em Salvador por Otávio José Correia Neto. Quando olhamos de fora, vendo apenas a sinopse, sem qualquer pretensão a não ser uma leitura rápida, a história parece bem simples, nada mais do que as aventuras e os desafios de uma personagem chamada Clara, temperada com alguns conflitos envolvendo a igreja, além de um romantismo que se desenvolve ao longo da trama. Quem nunca ouviu uma história como essa, talvez em uma novela ou romance? Mas, como disse, PARECE simples... mas não é, principalmente pela forma como foi dirigida.


Clara não é uma personagem comum, não se encaixa dentro daquelas definições de bolso, nos rótulos que já acompanham nosso olhar. Quando pensamos em um personagem, pensamos em algo com fronteira, limite, definição; pensamos em uma costura bem coerente de ideias, gostos, características, etc. Um personagem nada mais é do que uma linha coerente que pode ser vista, captada, representada, como no criminoso de Rear Window de Hitchcock, visto pela janela por um telescópio. Na medida em que a desconfiança aumenta, e o clima de suspense invade as cenas, a identidade do criminoso ganha um contorno claro, tomando conta dos instantes finais do filme. Assim como em Rear Window, o personagem é quase sempre um elemento que pode ser nomeado, descrito, ainda que suas verdadeiras intenções estejam nos bastidores, apenas aguardando o momento certo. Mas essa não é a atmosfera da peça “Santo Inquérito”... Clara é representada por cinco atrizes diferentes, com corpos diferentes e idades também, todas compartilhando de um mesmo nome, um mesmo recipiente. Sem dúvida, esse não é um detalhe pontual, ou mesmo uma escolha arbitrária, muito pelo contrário. Essa característica quase esquizofrênica, com uma personagem sem uma identidade estável e fixa, rasgada por contradições, poderia soar como algo psicológico, subjetivo, apenas, mas alguma coisa aqui ultrapassa as fronteiras da própria psicologia, invadindo outros espaços, de um jeito bem kafkiano.


Claro que existe aqui algo de individual, um tipo de mergulho psicológico que complementa, e muito, a trama. Com isso, a personagem ganha uma profundidade interessante, fazendo dela não uma caricatura, uma abstração, e sim alguém com uma trajetória, com um corpo que sangra, sua, fede, grita, corre... Cada uma das atrizes que representa Clara adiciona um contorno muito único à personagem, um traço que reforça bastante sua identidade. Mesmo contraditórios esses traços, tão diferentes entre si, não prejudicaram o enredo, mas adicionaram um toque alternativo e importante. Essa dimensão esquizofrênica fez da personagem algo de Real, concreto, alguém que oscila, que fragiliza, que se contradiz, ou seja, uma pessoa de verdade, como aquelas que atravessam nosso caminho na calçada, ou nas páginas angustiantes de um Dostoievski, ou mesmo nas cenas de diretores como David Lynch ou Kubrick.


Apesar da profundidade psicológica da personagem, não nos afogamos em algum psicologismo, perdidos em discussões particulares e subjetivas. Por algum motivo, Clara permanece representando algo mais, algo além das suas crises e contradições. Mesmo sendo concreta, de carne e osso, mesmo fugindo da caricatura, do rótulo esvaziado, ela não perde seu traço coletivo, sua capacidade de se conectar com todos, principalmente com o público feminino. Ela é, ao mesmo tempo, particular e universal, concreto e conceito, corpo e mente, indivíduo e grupo. Na performance de Clara, realizada pelas cinco atrizes, nenhum dualismo permanece, nenhuma dicotomia, nenhuma fronteira, já que a realidade é justamente assim, ou seja, algo em fluxo, um tipo de espaço complexo e cheio de oscilações.


Ao tratar do machismo, a peça conseguiu um feito incrível, extremamente raro, ao não simplificar a vida e seus obstáculos, o que seria o óbvio a fazer. Como acontece em muitas peças políticas, uma caricatura sempre se forma, principalmente do vilão, na maioria das vezes apenas um recurso de conveniência, reforçando mais ainda as boas intenções do herói, o outro polo do dualismo. No “Santo Inquérito”, ao contrário, existem apenas anti-heróis, indivíduos rasgados por valores e intenções complexas, o que não interfere, nem um pouco, no conteúdo político da história, muito pelo contrário. A luta política se torna real, concreta, e não uma ficção convenientemente imaginada por alguém. O Outro, quando aparece, ganha traços de experiência, sugerindo uma trajetória, um conjunto complexo de escolhas, gostos, cores, etc. A obra “Infiltrados na Klan”, indicada a estatueta de melhor filme no Oscar desse ano, dirigida por Spike Lee, também apresenta seus personagens com esse senso de trajetória e profundidade, mesmo os membros do KKK (Ku Klux Klan), grupo neo-nazista presente até hoje nos E.U.A. Sendo um diretor negro, conectado com as lutas da militância, seria previsível uma caricatura e uma simplificação da história, ao mesmo tempo que temperada por algum tipo de romantismo, mas, felizmente, não foi o caso. O filme conseguiu surpreender pela sua maturidade, assim como a peça de Dias Gomes.


No “Santo Inquérito”, as crises e contradições que acontecem no enredo podem ser consideradas metáforas, obstáculos que aparecem no caminho de cada um, independente de quem seja. Só tenha cuidado com essa linha de raciocínio!! Não podemos correr o risco de cair no terreno conceitual, achando que tudo é um simples assunto de representação, metáfora e referências. A peça é mais profunda do que isso, principalmente ao fazer do corpo um protagonista. O sentido que é captado, na maioria das vezes, não representa nada, mas sim impacta, choca, traumatiza, como na cena final, momento em que Clara grita de desespero. O que representa o Grito? Pois é... essa pergunta não faz sentido, já que Clara não é uma caricatura, uma ideia, um argumento, mas uma experiência. A própria sensação de absurdo que é sentido em algumas cenas, especialmente os instantes de machismo, não pode ser compreendida como se fosse uma teoria, uma tese, mas sim um choque, um trauma. A realidade é tão intensa, é tanto excesso, que chega ser difícil de nomear. Alguma coisa escapa, algo que nos lança direito para um mundo conservador e irracional.


Apesar da profundidade de Clara, além da maioria dos outros personagens, alguns outros permaneceram pouco desenvolvidos, como o notário, por exemplo, uma figura que despencou muitas vezes em estereótipos. Talvez esse mesmo estereótipo não fosse um problema em uma outra peça, mas nessa, em particular, gerou um pequeno defeito. Diante de personagens tão bem desenvolvidos, como a própria Clara, o Notário acaba se tornando apenas uma caricatura, uma figura genérica, nesse caso, “o gay”. Quando olhamos a Clara sabemos bem quem ela é, seus conflitos, ou seja, conhecemos bem sua identidade, o que não acontece com o Notário. Ele é apenas uma imagem genérica, uma cópia de tantas personagens que já passaram por novelas, programas de humor, filmes, etc. Talvez tenham buscado um alívio cômico, mas, ainda assim, poderiam ter adicionado uma maior profundida ao personagem, o que provavelmente reforçaria o sentido da história.


O cenário fixo e básico reforça mais ainda os atores, mantendo em primeiro plano cada uma de suas performances. Os dois pequenos musicais que acontecem, no inicio e no fim da história, ainda que tenham sido bem desenvolvidos, não parecem acrescentar nada de muito decisivo, nada que não tenha sido já explicado antes. Esses dois pequenos musicais acabam sendo apenas um acréscimo estético, um elemento que embeleza mais ainda a peça. Para além disso, não acrescentaram nada de mais na história, apenas deixando explicito, escancarado, uma mensagem que já tinha sido captada. De qualquer forma, nada disso mancha o espetáculo que foi a peça "O Santo Inquérito".


Referência da Imagem:

https://veja.abril.com.br/blog/letra-de-medico/quais-serao-os-novos-tratamentos-para-esquizofrenia/


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