Beyonce. Clip Pretty-hurts
Quando o filósofo francês, Michel Foucault, escreveu sobre a sociedade disciplinar, observou que em seu tempo as instituições visavam fabricar corpos dóceis e adestrados, máquinas prontas para executarem ordens e serem totalmente úteis. O enquadramento sexual, educacional, profissional, psíquico se coadunava com um tipo de poder disciplinar, exercida através de vigilância hierárquica, exame e sanção normativa. A modernidade ocidental criou mecanismos disciplinares capazes de formatar corpos para servir a determinados interesses políticos, econômicos, religiosos, científicos. Pessoas que não se encaixavam nos padrões eram desqualificados, mas, ainda sim, com potencial de reenquadramento.
A partir da segunda metade do século passado, a sociedade começou a perder essa eficácia disciplinar de frear e limitar comportamentos, de impor uniformidade. Essas mudanças ocorreram através de vários movimentos ideológicos e protestos sociais que visavam a libertação de corpos e mentes, longe de padrões castradores da subjetividade. Lutava-se pela independência individual e por mais direitos. Buscou-se a diversidade e a pluralidade. Houve empenho para a crítica da racionalidade instrumental, limitadora da criatividade e imaginação. Questionava-se, por fim, o establishment e a tradição. A liberdade de pensar, sentir e agir contra uma cultura retrógrada, arcaica, repressora e controladora da espécie humana.
Hoje, não se pode mais falar em sociedade disciplinar, ao menos em uma face centralizadora. As pessoas acreditam estar em posse de um poder ilimitado, longe de regras - do não pode e não deve - e distante de proibições e formas de uniformização. O fracasso, a derrota ou qualquer tipo de queda é inaceitável. A sociedade não permite a fraqueza. “Posso tudo! Tenho todo o direito! Sou capaz de empreendimento e projeto individual. Posso controlar minha vida! A autoridade social é coisa do passado”.
O indivíduo é instigado a ser um poço de iniciativa. Pensar fora da caixinha. Ser o melhor. A lógica do imperativo de obedecer a si mesmo e, ao mesmo tempo, a pressão por maior desempenho. Excelência no trabalho, no sexo, na aparência, no relacionamento, na escola, o que causa esgotamento e cansaço, levando a sérios adoecimentos, como ansiedade, depressão e o extremo do suicídio. Uma verdadeira apologia a ser mais e melhor: sorridente, amigável (redes sociais), vistoso (sou visto, logo existo!), bonito, simpático, graduado (alta escolaridade) e, claro, endinheirado.
Byung-Chul Han fala que caminhamos para uma sociedade em que o sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obrigava a se adequar; hoje ele se vê soberano de si. O inconsciente coletivo do século XXI trocou o dever da sociedade disciplinar pelo poder da sociedade de desempenho. Mas, “a queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário faz com que a liberdade e coação coincidam”. [1] Em outros termos, a liberdade alcançada veio junto com uma auto-coação. Uma liberdade coercitiva! Contraditório, não?
A autorreferencialidade, que dotou cada um de nós com uma suposta liberdade, veio junto com o preço da autopunição, que execra o fracasso, a baixo estima e a falta de iniciativa. O superego freudiano engessado, castrador, disciplinador, normalizador da conduta humana transformou-se em um superego do tudo pode, da infalibilidade e da liberalização de patológicas formas superlativas: hiperindividualista, hipernarcisista, hiperconsumista. Somos soberanos e frustrados!
Até a próxima!
[1] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Ênio Paulo Giachini, 2. ed. ampl.Petrópolis, RJ: Vozes, p.29, 2017.
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