A atriz e modelo Patrícia Araújo morreu no último sábado, 6. Ela se destacou na TV, graças a sua participação na novela Salve Jorge, na qual interpretou uma mulher trans, vítima de tráfico internacional. No cinema, atuou no filme O vendedor de sonhos.
Aos 37 anos, Patrícia nos deixa. Ela tinha depressão. Era uma pessoa transgênera. Sua beleza e atuação profissional foram lembradas com muito carinho por Glória Perez: “Que triste!!! Tão bonita, tão jovem!!!” O estilista Beto Neves, responsável pela marca Complexo B, grife pela qual Patrícia desfilou em 2009, na Fashion Rio, também lembrou com saudade e tristeza da amiga: “Faleceu sábado minha amiga querida. Trajetória nem tão curta pra quem foi expulsa de casa aos 11 anos. Em 2009, foi eleita como a mulher mais bonita do camarote da Grande Rio no Carnaval Carioca. No mesmo ano que brilhou no meu desfile no Fashion Rio. No fundo uma menina, porém a depressão foi mais forte. Não resistiu”.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), no Brasil, pessoas trans e travestis são expulsas de casa, aos 13 anos, em média. Sua expectativa de vida é de 35 anos. Apenas 0,02% desse grupo social se encontra na universidade. Percebemos nesses dados a vulnerabilidade desta população. Expulsas de casa ainda na pré-adolescência e privadas de atingir níveis mínimos de educação formal, são empurradas à atividades marginalizadas pela sociedade, a exemplo da prostituição. Nesse cenário, seu acesso e permanência em espaços de poder é inviabilizado. Seu direito de existir é negado. Suas vidas são alvo de um verdadeiro genocídio.
O tempo político, histórico e cultural brasileiro é de naturalização do ódio. Segmentos da elite brasileira viram-se autorizados a escancarar, sem nenhum pudor, sua ira face aos poucos avanços sociais conquistados entre os anos 2003 e 2014. Na visão dessas camadas economicamente elevadas, o negro não poderia ter entrado na universidade. A filha da empregada doméstica jamais deveria ter passado no vestibular. E as pessoas trans e travestis não podem acessar nenhuma cidadania. Perceberam que não conseguiam inviabilizar a ascensão desses estratos através do voto. Perderam quatro eleições e sentiram que perderiam novamente em 2018. Então, decidiram destruir a democracia e paralisar a cadeia produtiva nacional. Conseguiram.
No interior do obscurantismo em que o mundo mergulha, grupos socialmente minoritários são vistos como corpos aptos para sofrer violências. Corpos ininteligíveis, que podem ser dominados e destruídos quando a ocasião se fizer propícia. Muitos podem contradizer essa hipótese, argumentando que a LGBTfobia foi recentemente criminalizada. De fato, a 13 de junho desse ano, o ódio contra pessoas LGBT+ foi equiparado ao racismo, o que, na prática, se constitui crime previsto em lei. Sem dúvida, um avanço histórico, ainda mais por ocorrer em momento de tamanhos retrocessos. Todavia, leis não mudam comportamentos endossados pela cultura. Leis não tornam as pessoas mais sensíveis ao sofrimento humano. Leis não transformam nosso olhar sobre a sociedade e seus processos de violência contra corpos suscetíveis. Leis punem, mas não educam para a mudança de paradigmas.
Tenho 37 anos, como Patrícia. Tenho depressão como ela também tinha. Entretanto, sou uma pessoa cis. Meu lugar de fala jamais será o dela: pessoas trans e travestis sofrem repressão mesmo antes de nascer. Nossa civilização reconhece como menos que nada tudo aquilo que supera a dicotomia homem-mulher, macho-fêmea, pênis-vagina. Costumo chamar isso de cis-extremismo: um conjunto de medidas radicais realizadas pela cisgeneridade, a fim de garantir a hegemonia da cultura cis, começando mesmo antes do nascimento. Com efeito, quando o exame de ultrassom indica um pênis ou uma vagina, ele também se apropria do corpo, iniciando seu processo de subjugação.
Então, diante da quase inexpugnável soberania desse CIStema, por que um homem cis heterossexual, escreve sobre identidades trans e travestis, no silêncio das madrugadas? A resposta pode ser encontrada em O Cotidiano e a História, obra da filósofa marxista Agnes Heller, na qual se encontram duas categorias de ser humano. A primeira é composta pela maioria dos seres humanos e é denominada humano particular. Segundo a autora, neste grupo se encontram pessoas preocupadas apenas com a defesa dos próprios interesses. Por outro lado, a segunda categoria, nomeada humano genérico, refere-se às pessoas que se indignam com a realidade e consigo mesmas. Sentem a dor das injustiças sociais e o bem superior contido no ser humano. Nesse ínterim, fazem uma escolha: contribuir com as demandas universais.
Não é por sentimentalismo. Nunca se tratou de virtude. Tampouco de pena. Escrevo sobre pessoas trans e travestis, porque ao sintonizar com suas dores, alegrias, sofrimentos e conquistas, tomo consciência de que não perdi o senso das minhas obrigações como ser humano. Ao discutir essa temática, a qual considero ser a grande questão do nosso tempo, sinto que continuo vivo e humano, em uma sociedade que tentou me matar no corpo e na psique diversas vezes.