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Antonio Danilo Pereira Santana

Os headbangers e o Brasil bolsonarista


No Brasil dos últimos anos, um tipo de pensamento se espalhou até onde, ao menos em tese, seria um contrassenso ele ter chegado. Os chamados headbangers, ou metaleiros, como são mais conhecidos por aqui (ou ao menos grande parte destes), refletem a imagem do Brasil bolsonarista dos dias atuais: ódio aos direitos humanos, misoginia, homofobia, repulsa a partidos de esquerda (e mesmo à forma-partido) etc.


Deparando-me com tal fenômeno, vários caminhos fáceis me tentaram, na busca por uma resposta sobre a causa do reacionarismo entre os ouvintes do heavy metal, tais como a grande audiência de um tal Nando Moura, típico headbanger paulista de classe média que ama odiar tudo em nome de Deus, da moral cristã e da família, diretamente do conforto de seu canal no Youtube; ou a predileção destes moços e moças por contos da Europa medieval, com seus reis másculos e paternalistas, suas princesas pudicas e de faces helênicas.


As tentações foram muitas para que eu desse por encerrado qualquer tipo de esforço analítico sobre a relação entre heavy metal e bolsonarismo, se eu, enquanto admirador da filosofia de Jacques Derrida [1], não fosse daqueles observadores chatos e teimosos que enxergam a verdade para além do texto, mais precisamente abaixo de sua superfície. Deste modo, vou deixar as tentações das explicações calcadas nas primeiras aparências de lado e me arriscar num mergulho, ainda que não profundo, devido ao pouco volume exigido por este tipo de texto.


Em primeiro lugar, é preciso que mergulhemos um pouco no contexto em que o heavy metal chegou ao Brasil, pois eu seria irresponsável, enquanto cientista social, se não começasse a tentar entender determinado fenômeno pelas suas origens. De acordo com o sítio eletrônico João Rock [2], o heavy metal começou a ganhar espaço na cena roqueira brasileira com a banda mineira Sepultura, no longínquo ano de 1984. Logo em seguida, em 1985, temos o sucesso da banda paulistana Viper. Ambas as bandas tinham influências em comum, embora a primeira primasse pelo peso sonoro e a segunda, pela técnica. Outras bandas surgem com certa força no período, a exemplo da também mineira Sarcófago – fale-se que esta inclusive influenciou o black metal norueguês, movimento musical controverso e causador de certo impacto social naquele país e em parte da Europa, no início dos anos 1990, nem sempre pelas músicas...


Em comum, as bandas brasileiras possuíam ainda a preferência por cantar em língua inglesa. A estética dos fãs dessas e de muitas outras bandas de metal que se tornaram relativamente famosas no cenário roqueiro brasileiro naquela década era característica: camisas pretas com imagens de bandas, demônios ou monstros, botas de couro (coturnos) e braceletes. Os cabelos grandes também foram e continuam a ser uma marca dos adeptos do estilo. Anote-se ainda que, desde o início, também se tem notícia de certa rixa entre a tribo metaleira e os amantes dos estilos musicais igualmente importados no mundo anglo-americano punk rock e hardcore. Entretanto, se por um lado os amantes desses últimos estilos, em sua maioria, sempre se definiram politicamente como anarquistas, socialistas, ecossocialistas ou adeptos de alguma outra corrente de esquerda, é igualmente notório o fato de que grande parte dos metaleiros sempre tenha transitado entre uma postura política de certa apatia e posições mais conservadoras, até mesmo reacionárias.


Como vemos, nem todos os males podem ser creditados a Bolsonaro e seu (des)governo, embora ninguém tenha dúvida de que, à medida que as portas do inferno se abrem, as mais ferozes bestas que lá habitam costumam dar as caras, isto é, a postura reacionária dos headbangers constitui uma de suas posições políticas tradicionais, algo que vem desde muito antes do Brasil viver sob a gestão de extrema-direita do bolsonarismo, embora a atmosfera nacional, hoje, esteja muito mais propícia à circulação do ódio social mais corrosivo.


Porém, para além dessa questão, algo de pouco comum na postura metaleira emergiu de alguns anos para cá, e isto, sim, tem a ver com a ascensão do bolsonarismo. Como dito antes, nunca me pareceu comum os adeptos do metal pesado se engajarem politicamente, ao menos não enquanto maioria, ou seja, quando ocorria, parecia-me que fosse sempre por meio de indivíduos dispersos. Por essas e por outras, arrisco-me a dizer que o reacionarismo dos tempos atuais tem um potencial inegável, isto é, a capacidade de engajar politicamente dos agroboys da música autointitulada sertaneja aos headbangers criados em prédios simples e também nos luxuosos das zonas nobres das capitais brasileiras, passando pelos tiozões ouvintes de Roberto Carlos e Benito Di Paula – de repente a política emergiu na sociedade, ainda que deformadamente, e todos, como num passe de mágica, viraram analistas dessa arte.


Os postulados espalhados de celular em celular em forma de fake news de repente passaram a ter legitimidade social tais quais os manuais de Bobbio, Maquiavel, Schumpeter, Gramsci etc. para o meio intelectual. E a intelectualidade, essa passou a ser cada vez mais atacada pelas massas e elites bolsonaristas, e, como de súbito, o que era ridículo e absurdo passou a ser considerado como provável.


Ora, vejam só! até uma pseudo-intelectualidade pretensamente verdadeira e forjada não nas técnicas científicas ou na exegese filosófica, mas nas narrativas recheadas de misticismo, alarmismo, conspiracionismo e negacionismo foi ganhando espaço e servindo de esteio e suposta legitimidade para as hordas reacionárias, tendo sua voz principal num astrólogo brasileiro radicado nos Estados Unidos e que se autointitula filósofo e principal perseguido pela imprensa comunista brasileira, ele mesmo, Olavo de Carvalho. Afinal, para uma sentença combater outra, ambas devem estar no mesmo campo argumentativo, nos ensina uma regra básica da Lógica – mesmo que, neste caso, a narrativa deles finja estar combatendo outra no mesmo plano lógico-argumentativo, embora até um pré-adolescente saiba que quem compra obscurantismo por ciência faz um negócio pior do que levar gato por lebre, pois estes ao menos são seres com várias características em comum (mamíferos, peludos, velozes...)...


A atração de pensamentos que compartilham muitos aspectos semelhantes é um fenômeno inevitável, e não é preciso mergulhar nos dados científicos, na lógica filosófica nem tampouco no obscurantismo disfarçado de saber para se chegar a tal conclusão. Era óbvio que o bolsonarismo uma hora atrairia os amantes do heavy metal, da mesma forma que este encontrou um dos seus pilares entre jovens das classes médias revoltados com “tudo isso que tá aí, tá ok?!”, ainda que numericamente insignificantes em termos de votos.


Mas (aqui surge sua dúvida), se os fãs do metal pesados formam um gueto inclusive entre os roqueiros, como influenciariam no fortalecimento do bolsonarismo? É justamente nesse ponto que muitos se enganam. Para uma força política se tornar hegemônica, em termos gramscianos (dominação + direção) [3], esta necessita se apresentar como legítima entre a maior parte das camadas da população do território sobre o qual ela atua, dos grupos sociais mais aos menos numerosos. Logo, a capacidade do novo reacionarismo de penetrar como discurso-verdade em camadas sociais numericamente inexpressivas como a dos metaleiros é, também, sinal de sua hegemonia política.


Levando-se em consideração o acima exposto e acrescentando o fato de que, quando falamos na nova extrema-direita brasileira, a exemplo do que acontece com esse espectro político noutros cantos do mundo, não estamos falando de grupos coesos e politicamente disciplinados, ao menos não em sua maioria, mas de forças dispersas, muitas vezes até confusas, além de ainda em formação. Afinal, diferentemente da juventude de esquerda filiada ou simpática a partidos como o PT, o PCdoB e o PSOL (este mais recente) ou daquela representante da direita liberal, em geral próxima ou pertencente às fileiras do PSDB e do DEM (antigo PFL), os jovens recém-engajados simpáticos ao bolsonarismo nem sequer são amantes da ideia de partido político. E nada pode ser mais coerente com essa lógica, se ficarmos com o exemplo dos headbangers, tendo em vista que para estes, ao louvarem e viverem com suas mentes ligadas a uma espécie de mundo-fantasia recheado de dragões, reis, princesas, castelos, elfos e todo tipo de realidade e folclore pertencentes à Idade Média europeia, enfim, ter apego a instituições de uma era posterior não faria muito sentido. Democracia? Muitos metaleiros respondem: não, obrigado! As outras frações bolsonaristas também não insistiriam muito em responder noutra direção.


Para encerrar estas linhas, gostaria de ressaltar o aspecto de confusão de ideias presente entre headbangers. Algo igualmente comum a outras correntes bolsonaristas. Os amantes do heavy metal, salvo aquelas almas que curtiram e entenderam as mensagens de valorização da cultura brasileira presentes em obras como Roots, do Sepultura, e Holy Land, do Angra, tendem a alimentar discursivamente certo desprezo pela música e a cultura nacional. Lembro-me, até, lá pelos idos de 1997, quando eu ainda não tinha completado 17 anos, que estava numa roda de colegas, num intervalo entre aulas no colégio estadual onde cursei parte de meu ensino médio, aqui em Salvador, e um típico headbanger que compunha ocasionalmente a roda me saiu com essa fala anti-brasileira: “tudo nos países desenvolvidos é superior, até os índios dos Estados Unidos eram mais evoluídos que os nossos, que eram os povos mais primitivos da Terra, naquela época da colonização”. Qualquer coincidência entre essa verborragia e muitos dos discursos bolsonaristas contrários a reservas indígenas sob a desculpa de que os povos originários devem virar capitalistas, empreendedores, devem “evoluir”, tenham certeza, não é mera coincidência.


Por fim, noutros termos, se todos eles, Bolsonaro, metaleiros e demais reacionários são órfãos afetivos de um passado de guerras, forças, domínio masculino total, aristocracia, Estado misturado com religião, enfim, não caberia aos mesmos respeitarem povos que optaram por não entrar na civilização ocidental, com suas instituições e dramas que lhes são próprios? Vai saber o que se passa na cabeça dessa gente que ama odiar.


* Antônio Danilo Pereira Santana. Mestrando em Ciências Sociais pela UFBA. Técnico Universitário de Nível Superior na UNEB. E-mail: danilo.sociologo@gmail.com



Referências


[1] DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro, São Paulo, SP: Perspectiva, 2000.


[2]Disponível em: <https://www.joaorock.com.br/blog/o-heavy-metal-no-brasil-sua-origem-e-seu-auge>. Acesso em: 2 ago. 2019.


[3] COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1999.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola: 1996


Fonte da imagem: https://patria.digital/bolsonaro-visita-nando-moura-para-lhe-dar-os-parabens-feliz-aniversario-nando-moura/

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