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Sintonia e a realidade das periferias brasileiras

Sintonia é uma série ficcional da Netflix, lançada no último 9 de agosto. Baseia-se na trajetória do funkeiro Kondzilla que, ao lado de Johnny Araújo, dirigiu a trama. Mais do que mostrar o percurso do cantor e de seus amigos, nas favelas de São Paulo, a narrativa desenha o dia a dia das comunidades periféricas do Brasil.


Os diretores conseguem costurar diversos elementos sociais presentes nas periferias: a lógica do crime organizado, a polícia, o papel da religião e o entretenimento do funk. Não irei concentrar-me nos três protagonistas (Doni, Rita e Nando) que criam o elo de Sintonia. Meu foco nesse texto é a influência do sistema do tráfico e a importância das igrejas nas comunidades pobres.


A narrativa mostra o eixo relevante do tráfico nos seis episódios. As drogas têm toda uma produção logística, de comercialização, embalagem e venda em pontos estratégicos da favela, com clientes sempre dispostos a alimentar seus vícios. Há também a chamada pirâmide do tráfico, no qual o chefe, mesmo preso, comanda de dentro da prisão os seus subordinados (estratificados em várias funções). É o que ocorre com as várias organizações do narcotráfico no Brasil. A cumplicidade de agentes penitenciários corruptos, a comunicação de dentro da penitenciária com as ruas, é o retrato da ineficiência do Estado em lidar com o crime organizado. É uma realidade triste e crônica em nosso país.


A série destaca o poder do código de conduta e comportamento daqueles que estão inseridos na irmandade do crime: confiança, verdade, respeito, união. Os membros acreditam que esses laços são incondicionais. Estar dentro da confraria é jamais deixar os interesses pessoais sobrepor-se ao coletivo. Quando isso ocorre é traição. As consequências são devastadoras e desumanas, vide os vídeos de whatsapp que circulam vez ou outra.


Muitos que se aliam ao crime dizem que lutam contra o sistema, ou seja, o Estado. Este é visto como inimigo da sociedade. Quem resolve os diversos problemas cotidianos das comunidades periféricas é o comando do tráfico, substituindo o que seria a tarefa do poder público.


A relação entre a polícia e tráfico deixa bastante claro a promiscuidade dos agentes estatais. Infelizmente, temos que conviver com agentes de segurança que vendem a alma ao diabo e aderem ao lado mais podre da condição humana, ávidos por uma grana tentadora que nunca verão como funcionários públicos. Atentam não só contra o código de ética da corporação, mais contra o Estado Democrático de Direito e os valores religiosos que muitos dizem crê.


Algo que os diretores retratam muito bem é que estar no mundo do crime não é sinônimo de descrença religiosa. Os membros da organização acreditam em Deus e que Ele está abençoando-os de alguma forma. Alguns frequentam a igreja local e recebem a benção do pastor. A divindade é pasteurizada aos seus próprios interesses! Não podemos esquecer das inúmeras rebeliões e mortes nos presídios do país, com referências às crenças e símbolos cristãos.


Outro ponto que merece uma reflexão importante é o papel das igrejas nos locais carentes. Em um ambiente que impera a insegurança e o medo, em meio a disputas por almas consumidoras de drogas, desprovido de espaço para o lazer e a cultura, sem perspectiva de crescimento social, as igrejas têm funções acolhedoras não desprezíveis. Segurar na mão de uma alma sem rumo e dizer que Deus tem um grande plano na sua existência, e que deve devotar-se a encontrar o Espírito Santo, é abertura a uma nova vida de esperança, renovação e fé. Há espaço para transformação.


Em contextos de abandono do Estado, frequentar a congregação religiosa fortalece um laço comunitário, compartilhado por valores de proteção e ajuda mútua. Ou seja, em meio a um contexto que não favorece o bem-estar individual e social, que não há incentivo na promoção do desenvolvimento humano, assimilação de valores liberais e construção de cidadania, com consciência de dever e direito democrático, onde a regra é a ignorância, resta devotar-se às bençãos divinas conduzidas por pastores e missionários (as). Para muitos, fora desse caminho resta o mundo “fácil” do crime.


Uma hipótese que merece ser testada é que quanto mais perigoso o lugar, maior o número de pessoas que frequentam igrejas, pois encontram refúgio, proteção e explicação às mazelas sociais. Uma boa pesquisa seria relacionar o número de furtos e homicídios de um determinado bairro ou região com a quantidade de igrejas existentes.


A doação financeira dos fiéis às igrejas. Doar significa acreditar na prosperidade, na benção divina. Quem tem receio de fazê-lo pode ser condenado a viver na mesquinharia, amaldiçoado pelo egoísmo. Não basta frequentar, é preciso dar um jeito de doar alguma coisa. A melhoria de vida é sinal de que Deus olhou pelo fiel e o agraciou por seu esforço. Ao menos este é o discurso que é enfatizado.


Então, leitores, boas razões para assistir a série? Têm muito mais coisas a serem exploradas. Espero que esse texto tenha sido um bom incentivo.


Até a próxima!


Fonte da imagem: https://www.omelete.com.br/netflix/quem-e-kondzilla-serie-sintonia

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