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Foto do escritorAlan Rangel

O drama do SAPIENS


A crença no ser humano como centro baseia-se na concepção de que todos somos de uma mesma espécie. Logo, temos uma característica similar como sapiens: capacidade de reflexão e escolhas. A fonte da moral e do direito, nas sociedades ocidentais liberais e democráticas, está na espécie. É o que há de mais concreto ao justificar uma universalidade de comportamento pacífico e igualitário.


Deslocar a fonte da moral e do direito ao ser humano, na virada antropocêntrica, é evitar que cada grupo ou pessoa reivindique outra fonte superior: deus, natureza, dinheiro, status, cor, etnia, gênero, sexo, povo, religião, cultura, pessoa em particular. Concretamente falando, se todos somos iguais, e devemos ser tratados como tais, com mesmos direitos e obrigações, significa que não há absolutamente nada que justifique inferioridade ou superioridade. Ou seja: atentar contra uma pessoa é agir contra a humanidade; é ferir a mim e a você, pois somos humanos. É a regra de ouro: “não fazes aos outros o que não gostaria que fizessem contigo”. Esta frase é antiga, mas ganhou muita importância na modernidade com os direitos individuais.


No século XXI, vivemos uma sociedade radicalmente complexa, na qual há diferentes escolhas e cardápios ao gosto individual. Não estamos mais num período em que predominava a terceirização das escolhas. No geral, somos mais livres para tomar decisões, o que, certamente, causa maior angústia: para onde ir? O que fazer com a liberdade concedida? Toda escolha tem consequências; lidar com elas é um enorme desafio à consciência.


Podemos falar em uma Era em que há excesso de responsabilidade individual: cada qual deve definir com clareza sua ação. A concepção de que todo ser humano é capaz de fazer escolhas conscientes sem prejudicar outrem. Ontologicamente, é a crença na capacidade racional de eliminar ou reprimir impulsos destrutivos, cruéis e violentos; atentados contra a espécie. Capaz de superar o irracional. A sociedade perfeita, no qual o humano é a fonte dos deveres e direitos, pressupõe a confiança no correto uso da razão, e, ao mesmo, a crença na igualdade humana. Tal é o pressuposto do humanismo moderno, do Iluminismo, dos direitos individuais.


Toda a construção feita até aqui parece razoável e importante. Ela é o arcabouço da laicidade e do estatuto humanista, de respeito universal. Contudo ela tem problemas. Primeiro, não se pode desprezar o número de pessoas que jamais farão qualquer esforço para identificar-se no outro. Sempre irão preferir a superioridade, seja no credo cultural, seja no biológico. Para elas a igualdade será sempre uma abominação, ou algo indesejado. Outro problema, é que esperar que o ser humano use o ego conscientemente, a todo momento, de forma controlável, é acreditar, ingenuamente, que impulsos sejam totalmente suprimidos, e o irracional seja ajuizado a favor da boa convivência. A psicanálise e a neurociência, por exemplo, já informaram que a maior parte da ação provém do inconsciente: aspectos não deliberados do aparelho psíquico.


A supressão dos apetites pode levar a transtornos psíquicos, numa dimensão psicossomática. Por isso viver em sociedade é uma corda bamba entre o princípio de realidade, aspectos conscientes/deliberados em favor da harmonia social, e o princípio de prazer, realização de comportamentos instintivos e pulsionais, irracionais, que podem ser lesivos ao corpo e à sociedade. A esse respeito, é quase impossível uma relação total de reciprocidade, ou harmonia, entre desejo e mundo. Exceto, talvez, os sábios.


Do ponto de vista da psique, o respeito à existência humana seria [...] “um mundo onde todo mundo se conhecesse um pouco mais, em que cada um pudesse se jogar menos pra fora de si, se esparrar menos sobre o outro, sobre o mundo [...] O autoconhecer-se seria a busca de descobrir a si mesmo; o eu sendo capaz de entender seus próprios desejos e avaliar o limite do gozo, o que dele se pode abrir mão, evitando o morticínio”.[1]


Mas sabemos que essa visão está bem distante da realidade. Tendemos a transportar as nossas angústias, medos, desesperos, frustrações, incompletudes no outro (no humano ou algo sobrenatural), retirando, assim, a responsabilidade do ego na construção de um nós. Este não é ausente de conflito, competição, tensão, cisão, mas a edificação de pontes, de diálogo, de boa convivência.


O grande desafio à humanidade é saber se a fonte moral das relações sociais, colocadas no ser humano universal, como espécie, é capaz de vencer todas as barreiras e muralhas que justificam a existência de superiores e inferiores, os que têm direitos e os que não têm. Ou assumimos que diferenças sociais e genéticas (nossos genes são particulares) não podem ser empecilhos na criação de uma fonte comum de coexistência, ou estamos fadados a uma divisão ad infinitum, como uma espécie amaldiçoada, criando e recriando inúmeras moralidades (ou pseudomoralidades), divisões, que jamais entrarão em acordo. Continuaremos então a justificar exclusão, escravidão, assassinato, miséria, intolerância, tortura, perseguição, genocídio, como tem sido a regra na história humana. Homo hominis lúpus? Continuaremos a imitar nossos antepassados: cumprindo o mesmo papel, seguindo o mesmo roteiro, fadado ao mesmo drama? Ou é possível quebrar o ciclo?


Quebrar tal ciclo pode nos levar a uma perspectiva pós-antropocêntrica. Recentemente, lendo Astrofísica para Apressados, de Neil de Grasse Tyson, entendi ser uma possibilidade a canalização da fonte moral ao Cosmo. Algo maior do que nós, nos apequenando, factual e operando por toda à parte. O Cosmo é ainda pouco explorado devido a sua colossal vastidão. Não é uma metafisica, como alguns críticos poderiam supor. É concreto. Estamos todos imersos no universo e não escapamos às suas regularidades. Não opera segundo uma forma teleológica, sequestrado por alguma ideologia que justifique poder. Admitamos que a terra é um ponto minúsculo na imensidão cósmica, preenchida por bilhões de galáxias e possíveis outras formas de vida, até mais desenvolvida. Por essas e outras questões, isso não deveria ser motivo para brigarmos por comida, sexo, poder, comércio.


“Imagine um mundo em que todos, especialmente as pessoas com poder e influência, têm uma visão ampliada de nosso lugar no cosmo. Com essa perspectiva nossos problemas encolheriam – ou nunca chegariam a surgir – e poderíamos festejar nossas diferenças terrenas, ao mesmo tempo que rejeitamos o comportamento de nossos predecessores que massacravam uns aos outros por causa deles”. [2]



Notas


[1] Fala da psicanalista Maria Homem, na Casa do Saber. https://www.youtube.com/watch?v=QGP4QuMyYqE

[2] Tyson, Neil Degrasse. Astrofísica para Estressados. Tradução de Alexandre Martins. São Paulo: Planeta, p. 170, 2017.


Fonte da imagem: https://domtotal.com/noticia/1122838/2017/02/homo-sapiens-errat-est/

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