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O brasileiro diante da democracia


O que mede o senso de democracia de um povo? Como é possível, em pleno século XXI, que nacionais lidem com a escolha de seu presidente como se estivessem a escolher pão na padaria da esquina? Pensar a democracia como um valor universal, tal qual pensada pelo saudoso cientista político brasileiro Carlos Nelson Coutinho, ao longo de sua robusta obra, significaria pensá-la enquanto valor autorreferente e capaz de se reproduzir naturalmente, sem um aparato institucional a assegurar o seu funcionamento? Assim como o processo de reificação da mercadoria através dos mecanismos ideológicos que operam como superestrutura do modo de produção capitalista, a ideia de democracia não teria a capacidade de projetar-se na mente de quem estuda a questão como semblante da verdade política absoluta, a realidade última da sociabilidade humana na civilização contemporânea, algo pós-ideológico, portanto? Cabem estas e muitas outras indagações, quando o assunto é o fenômeno democrático e suas contingências.


O simbólico manifestado nas expressões sagradas permeia a sociabilidade humana ao longo da existência do homo sapiens, desde muito antes do surgimento da civilização. Se nos propusermos a investigar acerca da base do poder ao longo da história humana, notaremos que sociedades cujos títulos de seus mandatários não encontram legitimidade em alguma espécie de sacralidade é a exceção, não a regra. Neste sentido, só com a proposição da democracia, na Grécia antiga, surge a ideia de um governo lastreado por princípios como laicidade, mérito e representação plural de interesses. Ao mesmo tempo, mesmo se tratando, naquele caso específico, de uma democracia restritiva (sem a participação de escravos e mulheres, por exemplo), eclode com a ideia democrática a espinhosa questão de como ser possível a um regime de governo em cujos governantes não são constituídos com base em títulos estabelecidos através de alguma legitimação sagrada tornar-se algo estável e duradouro. Segundo Jacques Rancière, “democracia quer dizer, em primeiro lugar, o seguinte: um ‘governo’ anárquico, fundamentado em nada mais do que na ausência de qualquer título para governar” (RANCIÈRE, 2017, p. 57).


Por outro lado, o filósofo supracitado não crava a impossibilidade democrática, antes entendendo que ela, a democracia, seria algo como o “ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado” (RANCIÈRE, 2017, p. 66). E deste modo, talvez, num país com forte tradição autoritária como o nosso, seja mais estável aquele governo que menos se expresse democraticamente em suas práticas político-administrativas. Neste sentido, no Brasil atual nós temos a mais perfeita alegoria da possibilidade de um projeto de poder vingar por vias democráticas, mas, quando no domínio do aparato estatal, mostrar-se praticante de ações antidemocráticas e, ao mesmo tempo, fomentador de valores reacionários e autoritários no seio da sociedade.


Da mesma forma, o atual governo brasileiro, como outros governos ao redor do mundo, ao longo da história, comprova de maneira nítida o fato de que, assim como socialismo não é sinônimo automático de democracia radicalizada, tal qual pensara Marx, o liberalismo não gera necessariamente um Estado democrático. E nunca é demais lembrarmos que a nossa república, surgida a partir da emergente força política e entusiasmo das elites liberais esclarecidas daquela época, já nascera namorando o autoritarismo. Como aponta Lilian Schwarcz, a respeito dos governos de Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894), os nossos primeiros mandatários republicanos, que já estes “governaram parte de seu período presidencial sob estado de sítio” (SCHWARCZ, 2019, p. 224).


Não podemos, no entanto, esquecer de que quando dizemos que o Brasil tem tradição autoritária, tendemos a pensar somente nas dificuldades e contingências que recorrentemente acometem nossas instituições políticas sob a democracia e também a lembrar dos longos períodos de usurpação do poder pelos militares, mas quase nunca pensamos nas relações sociológicas mais elementares. Desde o período colonial, os processos de violência imbricados na nossa sociabilidade são uma marca sombria da nossa história. Mas há ainda a questão da morte social a partir do assassinato das memórias de um povo pelos detentores do monopólio do poder político e econômico, algo muito concreto na nossa narrativa histórica, como aponta Schwarcz, citando o sociólogo Mário Augusto de Medeiros da Silva, ao falar da maneira deliberadamente tacanha e desonesta como o Estado e as elites brasileiras buscaram integrar a população negra na sociedade de classes: “essa seria uma ‘dupla morte’ das pessoas negras; mata-se o indivíduo mas também sua memória” (SCHWARCZ, 2019, p. 31).


Violência aberta, apagamento da memória (violência simbólica) e golpes de Estado (militares ou parlamentares, uma violência institucional), enfim, estaríamos, enquanto país, fadados à violência como marca indelével de nossa sociabilidade e na contramão de um nível satisfatório de democratização? Não acredito em destino pré-determinado, ao mesmo tempo em que também nunca desprezo a história. Assim, uma resposta adequada seria: por mais que nosso passado condicione e dificulte nosso avanço rumo a uma sociabilidade mais harmoniosa e sob instituições democráticas mais robustas, precisamos acreditar que é possível nos mantermos utópicos, no sentido construtivo do termo (utopia enquanto impulso enérgico rumo a uma transformação tangível, possível), e assim avançarmos, no sentido civilizatório.


Carlos Nelson Coutinho, em sua obra Marxismo e Política: a dualidade de poderes e outros ensaios, diz-nos que a “radical contraposição entre vontade particular e vontade geral, presente em Rousseau, leva o pensador genebrino a prestar pouca atenção – para dizer o mínimo – à questão da emergência do pluralismo na sociedade moderna” (COUTINHO, 2008, 129). Ao reler esta passagem nos dias atuais (li este livro há cerca de doze anos), fico a me perguntar como Rousseau descreveria uma sociedade onde a vontade particular egoísta, extremamente individualista da maior parte dos seus eleitores do final da década de 2010 funcionou como expressão máxima, não de uma pluralidade de pensamento que convergiu para uma mesma ideia grandiosa de país, república ou federação, mas, ao contrário, da circulação de um pensamento, uma moral e um senso distorcido de justiça a funcionarem todos como o alicerce mais perigoso rumo à destruição da própria democracia. Dizendo de outra maneira, na análise do Brasil atual, Rousseau provavelmente deixaria de lado sua radical contraposição entre vontade geral e vontade particular para constatar como as reminiscências de um país violento por natureza conseguem, em pleno século XXI, continuar a travar o desenvolvimento de sua democracia.


Constataria também, sem dúvida, que as instituições nem sempre curam as feridas de um povo, que estas muitas vezes teimam em permanecer abertas ante as leis, a educação republicana de décadas e as mais profundas e longevas lutas sociais. De fato, o Brasil não é para amadores, concordaria o saudoso suíço.



Fonte da imagem: https://grupopapeando.wordpress.com/2010/09/20/o-que-os-brasileiros-pensam-sobre-a-democracia/


Referências


COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e Política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo, SP: Cortez, 2008.


RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo, SP: Boitempo, 2014.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2019.

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