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A Rede Globo e a democracia conveniente

Antonio Danilo Pereira Santana

“A oposição acusa o governo do presidente Evo Morales de fraudar as eleições da Bolívia!” Logo após essa chamada de uma apresentadora da Globo News, desligo a tevê e vou tomar banho rumo ao expediente de mais um dia de outubro de 2019. Enquanto a água escorre pelo meu corpo, de súbito me tomam a memória algumas lembranças, ainda desconexas, de falas passadas e atuais exibidas naquela mesma emissora: “Aí vocês podem ver a Paulista tomada, são vários quarteirões” (2013). “Segundo estimativas da PM paulista, havia cerca de um milhão de pessoas na última manifestação contra o governo de Dilma Rousseff” (2016). E segue: “Os manifestantes exigem a saída de Maduro e o governo reprime fortemente a manifestação” (2018). E, por fim: “No Chile, os protestos se dão com muita violência por parte dos manifestantes, levando o país a uma situação caótica” (2019). A mesma emissora, o mesmo padrão Globo de manipulação discursiva: quando do lado dos seus interesses e do mercado financeiro, são manifestantes bons e justos, quando não, são sempre inimigos da democracia e dos valores civilizatórios.


Peguemos a primeira fala, a que diz respeito à suposta fraude nas eleições bolivianas operada pelo governo do presidente Evo Morales. A narrativa reforça uma ideia muito semelhante àquela do PSDB em relação à eleição de 2014, ou seja, a de que tal processo fora fraudado pelo PT. Diante dessa fala e do respectivo pedido de auditoria das urnas na justiça estúpida do PSDB, que embarcara perigosamente no inconformismo do playboy Aécio Neves com a derrota já antes do certame eleitoral, o TSE encomendou essa inspeção e logo confirmou o nível de extrema segurança das nossas urnas, tocando o processo dentro da mais absoluta normalidade. Então veio a eleição e, logo após a derrota, o mineiro derrotado começou a tentar sabotar e minar o futuro segundo governo da petista, mais uma vez pondo em dúvida a segurança das nossas urnas, dentre outras manobras.


O restante da história todos nós conhecemos: aumento da polarização política no país, ascensão de movimentos ligados à extrema-direita, golpe de Estado jurídico-parlamentar através de um processo kafkiano e, por fim, o fortalecimento da figura de um completo despreparado, tosco e incompetente parlamentar do chamado baixo clero do legislativo nacional como presidenciável. E o impressionante disso tudo é que, mesmo os governos petistas não tendo demonstrado (acertadamente) intenção alguma de perseguir a grande imprensa – regulação da mídia só é censura na retórica furtiva dos proprietários dos grandes veículos de imprensa, já que ela é real e nem um pouco contestada em várias das mais tradicionais democracias do mundo – e a estratégia irresponsável e antidemocrática do PSDB e de outras forças da direita ter levado ao poder um governante que se mostra, no mínimo, hostil a suas organizações, a família Marinho parece jamais estar disposta a considerar a hipótese de não atacar a imagem de governos à esquerda.


A meu ver há duas hipóteses explicativas para essa persistente postura dos irmãos Marinho. A primeira é a de que, para manter-se alinhada ao capital financeiro, do qual o grosso é seu anunciante fiel, além de, obviamente, ela própria ser forte acionista no setor de títulos mobiliários, a família Marinho prefere a defesa de algum grupo político totalmente consonante com esse ramo econômico, um conjunto de forças que venda como única possibilidade de desenvolvimento para o país o modelo neoliberal puro sangue, isto é, aquele calcado em um agressivo programa de privatização de estatais, desmonte do funcionalismo público, capitalização da previdência, entrada maciça de capital estrangeiro no país, câmbio flutuante etc.


A segunda hipótese diz respeito a algum tipo de compromisso ou “pacto de sangue” do grupo com ramos da burocracia do Estado devido a estes terem poder sobre processos espúrios envolvendo algum tipo de sonegação ou fraude fiscal que porventura tenha sido praticada pelos irmãos, algo muito grande, na casa dos milhões de reais. Vira e mexe vem à tona falas neste sentido, mas, como não há provas claras, não posso agir para com os Marinho como eles copiosamente agem para com seus adversários políticos (muitos deles parceiros de outrora), isto é, não posso sentenciá-los de antemão (talvez somente nalgum barzinho, depois de certa hora da madrugada, pois nessas circunstâncias todos nós viramos juízes, não é mesmo?!). Essa segunda hipótese explicaria, por exemplo, o fato de, mesmo o governo de Bolsonaro sendo um governo orientado por práticas ultraliberais na economia, os irmãos Marinho optarem por se posicionar abertamente contra seu principal personagem, o presidente do “tá ok?!”, mas por permanecer fiel a seu ministro da justiça, Sergio Moro, à operação Lava Jato e, enfim, por replicar toda a narrativa por ela construída e sustentada nos últimos anos, algo caro às nossas instituições, diga-se de passagem


A primeira hipótese não exclui a segunda, basta imaginarmos que um eventual governo com Paulo Guedes, mas sem Bolsonaro no comando, casaria perfeitamente com os interesses dos donos da Globo. Daí ela trabalhar em prol da derrubada do Messias das bestas e bárbaros. Mas é aí que a coisa torna-se ainda mais complexa. Uma eventual queda de Bolsonaro, não garantiria: 1) o fim do bolsonarismo, portanto, de mais um grupo hostil às organizações dos Marinho; 2) a capacidade de Mourão conduzir um pacto de pacificação social, já que, ao contrário, sem pacificar nem os bolsonaristas nem a esquerda, as reformas neoliberais talvez travassem, agora não tanto por curtos-circuitos entre executivo e legislativo, como no governo bolsonarista, mas pela possibilidade real de convulsões sociais tanto sob manifestações da esquerda quanto da extrema-direita, essa última, revoltada com a destituição de seu líder máximo; e, por fim, 3) a influência preponderante de Moro sobre o governo Mourão, que seria, muito provavelmente, ancorado na influência do alto comando militar, e não tanto na de ramos do judiciário e do ministério público, o que, de maneira indireta, poderia minar a possibilidade de uma forte influência dos Marinho nesse eventual governo.


Que o governo Mourão seria ultraliberal na economia, não nos resta dúvida alguma. Mas isso não significa automaticamente ser pró-Globo. A equação não é tão simples assim.


E se a esquerda voltar ao poder em 2022? Bom, aí talvez ocorra com a família Marinho algo inverso ao que ocorrera ao personagem Raskólnikov, o protagonista de Crime e Castigo, do genial Fiódor Dostoiévski, obra e autor que dispensam apresentação. Ao final do livro, quando no cárcere, os companheiros de cela gritam a Raskólnikov: “Tu és um ateu! Tu não crês em Deus!’. Ele nunca falara nem de Deus nem de religião, e contudo eles queriam mata-lo como ateu. Não lhes respondeu uma palavra. Um prisioneiro, no auge da fúria, lançava-se já sobre ele; Raskólnikov, sereno e silencioso, esperava-o sem pestanejar, sem que músculo algum do rosto se movesse. Um guarda lançou-se a tempo entre ele e o assassino – um instante mais tarde teria corrido sangue” (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 548).


Noutros termos, num mundo quase ideal, como numa inversão da referência supracitada, os Marinho não seriam linchados e tachadas de ateus por não proferirem sua fé, ou seja, eles não receberiam um ataque frontal e devastador da esquerda por deixarem de defender um Estado de bem-estar social, mas, sim, por cultuar um Deus que só é divino para as elites econômicas, sendo um não-Deus ou a personificação das condições de ateísmo para as massas populares. Resta à esquerda, se vencedora em 2022, ser os companheiros de cela de Raskólnikov. Mas que seja ela a personificação de companheiros esclarecidos, ao contrário dos do romance russo, vencendo-a no campo da legalidade, com regulação da mídia, apuração de possíveis irregularidades fiscais dos proprietários dos grandes meios de comunicação (não só dos Marinho) e politização das massas, para que estas entendam porque a toda poderosa e as outras emissoras estão sendo passadas a limpo e pagando pelos seus erros.


E, enquanto termino essas linhas, chega até mim a notícia de que a população chilena pode estar próxima de conseguir, através de incessante luta que já dura dias, que seja instalada uma nova assembleia constituinte. E se isso vier a ocorrer, certamente o Deus da Globo, o neoliberalismo, terá seus tentáculos eliminados da carta maior chilena. Por aqui, as emissoras dos Marinho seguem tachando os manifestantes chilenos de violentos e descontrolados. É, ao contrário de seus vizinhos, nosso país não tem sido muito dado a novidades, pois, como diria o saudoso poeta Cazuza, ele prefere continuar vendo um museu de grandes novidades.


Imagem: https://observatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/noticia-da-tv/2019/06/tv-globo-e-a-emissora-de-televisao-de-maior-reputacao-no-brasil


Referência


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução de Ivan Petrovitch e Irina Wisnik Ribeiro. São Paulo, SP: Martin Claret, 2010.


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