“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”. É dessa forma que Albert Camus inicia o seu ensaio O mito de Sísifo (1941). O presente texto está longe de ser uma análise séria sobre a fecunda obra do filósofo do absurdo. Antes disso, gostaria de esboçar algumas alternativas de respostas à questão fundamental proposta por Camus. Sem pretensões de encontrar verdades, este texto é apenas um convite para pensar o problema, para tanto, alguns conceitos da teoria dos afetos de Espinosa serão revisitados.
Talvez exista uma pergunta anterior: o que é a vida? Ou o que compreendemos como uma vida digna de ser vivida? Consigo imaginar que muitas pessoas responderiam essas questões citando bens materiais, saúde e conforto. Outras tantas poderiam salientar o amor, Deus, espiritualidade e demais fatores abstratos. E em todas essas respostas é possível argumentar de modo razoável em defesa da dignidade da vida humana, contudo, gostaria de enfatizar dois aspectos fundamentais que fazem a existência valer a pena: liberdade e alegria.
Neste ensaio gostaria de trabalhar esses dois conceitos a partir da ótica de Espinosa.
Quando uma pessoa opta pelo suicídio ela quer dar fim ao seu sofrimento. Talvez, então, seja importante compreender o adoecimento psíquico como um estado no qual o ser é determinado pelos afetos de tristeza, sendo assim há ausência de liberdade e alegria, visto que só é livre aquele capaz de operar seus próprios afetos sem sucumbir a eles.
Espinosa construiu uma teoria na qual os afetos são destrinchados e analisados a fim de se criar uma ética da alegria. A essência do ser humano, de acordo com esse autor, é o desejo, somos seres desejosos que apetecemos de infinitas maneiras, por meio dos afetos de alegria ou de tristeza; os afetos alegres aumentam a nossa potência de agir e, dessa forma, nos deixam mais livres, os afetos de tristeza, diminuem nossa potência de agir e nos levam à prisão e a servidão pelos afetos. Padecemos pelos desejos que surgem das tristezas ou agimos pelos desejos que surgem das alegrias, no entanto, os desejos alegres são sempre mais fortes. Somos livres no sentido de agirmos de acordo com a nossa natureza. Espinosa define a alegria, a tristeza e o desejo como os três afetos originários de todos os demais.
O que significa ser livre? “Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e que por si só é determinada a agir” (SPINOZA, 2010, p. 13). Estar passivo diante da vida é como estar num barco sem rumo, sem porto e sem direção, navegando sobre influência dos ventos e dos mares. A potência humana fica reduzida, já que são os afetos que comandam e são causas dos efeitos e o ser não é livre, ficando submetido às flutuações de ânimo e tristezas. A vida que vale a pena ser vivida é, sobretudo, uma vida em estado de liberdade. No entanto, o ser humano não cansa de inventar a cada dia uma nova forma de escravidão, da mente ou do corpo. Ter consciência das amarras que encarceram um ser é um passo, nem sempre óbvio, em direção à plenitude da existência.
Outro afeto que torna a existência humana algo digno de ser vivido é a alegria. Para alguns alegria significa estar feliz, para Espinosa indica um aumento da potência de agir, estado de afeto no qual o ser é mais autoconsciente, livre e autônomo.
A vida vale a pena ser vivida porque é da natureza humana querer viver. O Conatus - esforço por perseverar na existência - é essencial ao ser - pode ser compreendido como uma verdade do corpo. Todo ser humano possui esse esforço e vive mais plenamente por ele. No entanto, os afetos tristes, tais como o ódio, o medo e a melancolia diminuem a potência desse esforço, de modo que o ser perde a sua capacidade de agir e padece pela via da tristeza. Esse padecimento não é próprio do ser, faz parte de uma ideia inadequada concebida pela mente ou de um desequilíbrio bioquímico do cérebro. Portanto, querer viver é um desejo totalmente vinculado à vida afetiva de cada pessoa. Conhecer os afetos pode ser vital para se libertar da escravidão afetiva.
A ética, contudo, é essa afirmação da vida e negação da tristeza. Espinosa salienta no escólio da proposição 45 da parte IV: “Nada, certamente, a não ser uma superstição sombria e triste, proíbe que nos alegremos” (SPINOZA, 2010, p. 319).
Encontrar uma resposta para a pergunta sobre a vida que vale a pena ser vivida talvez seja o maior desafio dos nossos dias. Em meio ao caos, desânimo, tédio, desespero e indiferença viver de forma alegre e livre parece uma utopia. Mas toda utopia carrega a sua dose de realidade, façamos da vida algo que valha a pena, sob duras penas, viver ainda é nosso milagre mais precioso.
Imagem: https://gazetemanifesto.com/2017/orgut-uyeleri-albert-camus-ve-baruch-spinoza-92782/
CAMUS, Albert; ROITMAN, Ari; WATCH, Paulina. O mito de Sísifo. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu. 3. ed. – Belo Horizonte: Auntentica Editora, 2010.