Os seguimentos das classes A e B do Brasil, ou seja, que ganham acima de 7000 mil reais, segundo dados do Departamento de Pesquisas e Estudos Econômicos do banco Bradesco e da consultoria LCA de 2017,[1] são considerados a elite brasileira. Nesses institutos de pesquisa, o critério é econômico. A classe A ganha acima de 11 mil reais. Uma observação: não estou separando classe média e alta, mas sim incluindo-os nos 10% da população com elevados rendimentos, que compõem, em geral, 54% a 55% da renda total do país.[2]
Nas classes A e B existem alas que podemos denominar, a grosso modo, de democráticas e antidemocráticas (ou autoritárias). Estou utilizando estes tipos, recorrendo a uma metodologia adotada pelo sociólogo e economista alemão, Max Weber. Tipo ideal é um esqueleto teórico que tenta explicar a realidade através de um construto arbitrário e abstrato, que tem consonância com o mundo factual, mas que não é seu reflexo fiel. Em outras palavras, podemos, por exemplo, criar o tipo ideal do autoritário, apontar suas características, em tese, e depois escolher um nicho social, percebendo quais propriedades são ali preponderantes, se uma, mais de uma, ou nenhuma. Nunca esgotando as possibilidades do real e suas imbricações complexas. Feito essa pequena explicação, focarei no tipo de elite antidemocrática ou autoritária.
Em primeiro lugar, em toda sociedade sempre existiu a fração elite. Esta, na definição da Teoria das Elites, de Gaetano Mosca (1858-1941), são minorias e estão na política, religião, economia e outrora bastante acentuadas na realeza/nobreza. Podemos olhar para o Brasil e ver que existe uma elite política, econômica, como em qualquer lugar do globo. Mas, há uma questão importante: estamos num Estado republicano e democrático, logo precisamos de elites que defendam tais valores.
Quais valores estamos defendendo? República, como forma de governo no qual há circularidade do poder, através da escolha dos representantes via voto, e Democracia, como regime de poder, de soberania popular, no qual os cidadãos são iguais, com mesmos pesos, direitos e deveres conforme a lei, e, como tal, podem ingressar nos diferentes espaços da sociedade.
O problema que no Brasil, o nosso passado autoritário e aristocrático é muito presente. República e Democracia, mais do que arcabouços legais, deveriam ser uma forma de vida, de cultura. A questão é que uma parte significativa da nossa elite ignora e/ou desconhece esses pilares da civilização ocidental, que estão legalizadas por aqui. Simplesmente, carregam o amaldiçoado ranço de superioridade moral. Não assimilaram os valores necessários para convivência em uma sociedade que demanda bem comum (República) e igualdade (Democracia). Para eles, não importa a forma ou regime de governo, interessa é continuar sendo elite; interessa o brio de ser minoria, superior, distinta de todas as outras classes.
Esses indivíduos, que estão nas classes mais abastadas da sociedade, em geral, têm nível superior, viajam sempre a outros países, falam mais de uma língua, frequentam restaurantes chiques, passeiam de iate e compõe, majoritariamente, a classe política e econômica do país. A elite em questão está incrustada no Estado. São também profissionais liberais e grandes empresários (proprietários), todos compondo a fatia de 10% da população.
Outra característica é que essa elite tem distanciamento da área de humanidades. Em geral, ojeriza a cultura e a história, e muitos alcançaram ascensão social cursando áreas mais técnicas.
Uma peculiaridade importante é o operador de Direito. Considerado um curso de humanas, formando várias pessoas ao longo da história país, sempre esteve atrelado à dimensão tecnicista, formalista, dogmática, acrítica. Os primeiros bacharéis tiveram formação em Coimbra, desde o início da colonização, com um ethos bastante tradicionalista, formalismo muito retórico e avessos às mudanças econômicas, políticas e culturais de sua época. A maior parte dessa elite jurídica era alijada dos problemas reais do país, incluindo a enorme desigualdade social e econômica.
“Não se pode deixar de chamar a atenção para o divórcio entre os reclamos mais imediatos das camadas populares do campo e das cidades e o proselitismo acrítico dos profissionais da lei que, valendo-se de um intelectualismo alienígeno, inspirado em princípios advindos da cultura inglesa, francesa ou alemã, ocultavam, sob o manto da neutralidade e da moderação política, a institucionalidade de um espaço marcado por privilégios econômicos e profundas desigualdades sociais”. [3] (p. 99)
A mentalidade dos primeiros bacharéis formados no Brasil, pós - Independência, era manutenção de um status social em conluio com as oligarquias rurais e industriais, o atendimento aos interesses estamentais burocráticos do Estado, segurança profissional e alinhamento ao conservadorismo. Sua formação combinava individualismo político liberal e formalismo legalista (WOLKEMER, 2003). Há, ainda, vários privilégios dessa elite jurídica. Elas são bastante definidas por continuarem reproduzindo um espírito aristocrático, oligárquico e corporativista muito distantes ainda da realidade cotidiana do país.
Todo o cenário apontado nos parágrafos anteriores impacta negativamente na formação de uma cultura cidadã, dentro dos marcos da defesa do Estado Democrático e dos valores fundamentais para uma cultura de igualdade, liberdade, bem comum e defesa dos Direitos Humanos. A elite autoritária e aristocrática brasileira não internalizou a defesa de direitos e deveres igualitários, continua repudiar a dimensão moral da universalidade humana, ou ainda estão presas ao passado colonial, patrimonialista, corporativista e escravocrata.
Na realidade, temos uma casta com poder econômico elevado, mas pobre culturalmente. O capital cultural de parte significativa da elite é simplista: detesta as letras, não frequenta museu, teatro, biblioteca, cinema alternativo e não aprecia obras de arte. No Brasil, essa elite vai, acidentalmente, a um show de Maria Bethânia e fala mal de seu cabelo ou de sua roupa; jamais mergulha nas músicas ou no legado da cantora baiana. Quando voa à outros países, não conhece suas histórias política, cultural e social. Se visita lugares históricos pousa somente para tirar fotos, colocar no instagram e facebook e encher de inveja seus amigos e familiares. Uma elite inculta, ignorante! Ou como disse o professor Marco Antônio Villa, é uma “elite rastaquera”.
Para Vargas Llosa, premiado literário peruano, em A Civilização do Espetáculo, as novas elites ocidentais mergulharam na Era da especialização, tornaram-se seres unidimensionais, perderam a capacidade de olhar além do seu próprio umbigo. Tudo isso seria reflexão de uma sociedade que tornou-se mais complexa e, ao mesmo tempo, com indivíduos atomizados e menos cultos.
A maior preocupação da elite brasileira é a manutenção de um status; continuar consumindo exageradamente, sem preocupação com os danos do hiperconsumismo e alheios aos problemas ambientais. Outra característica é detestar dividir espaços com pessoas de renda inferior: carregam o traço fóbico aos mais pobres. Essa camada antidemocrática não tem nenhum senso crítico e humanístico para apontar e enfrentar as históricas mazelas sociais do país; sua inquietação essencial é a segurança e interesse privatista ou, quando mais, vomitam verborragias. Não importa a eles a forma de governo, o essencial é continuar com seus duradouros privilégios.
Caros leitores, ao tentar traçar um tipo/perfil da elite antidemocrática, estou ciente que há mais complexidade do que simplicidade, mas creio ter suscitado algum incômodo. Ao meu ver, é muito preocupante como essa elite econômica, de ethos aristocrático e autoritário, vem deteriorando o Estado Democrático de Direito, as garantias fundamentais e tentando destruir valores do laicismo, da tolerância, do respeito às minorias e da diversidade cultural. Além disso, perpetuam o olhar arrogante às classes mais frágeis, identificando-as como párias e inferiores.
Até a próxima!
[1] https://valor.globo.com/brasil/coluna/estudos-apontam-que-ate-900-mil-pessoas-deixaram-classes-a-e-b.ghtml
[2] https://g1.globo.com/economia/noticia/1-mais-ricos-concentram-28-de-toda-a-renda-no-brasil-diz-estudo.ghtml
[3] WOLKMER, Antonio Carlos. O direito na época do Brasil Colonial. In: WOLKKMER, Antonio Carlos. A história do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 100.
Fonte da imagem: https://www.sikelianews.it/wps/curiosita/la-rivincita-dei-cessi-di-federica-vattano/