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A polêmica do Porta dos Fundos. Quem tem razão?

George Orwell, no prefácio de 1945, na obra Revolução dos Bichos: “A liberdade, se é que significa alguma coisa, significa o nosso direito de dizer às pessoas o que não querem ouvir”.

A Netflix passou a exibir um especial de Natal, A Primeira Tentação de Cristo, produzido pelo Porta dos Fundos, um grupo de sátira bastante conhecido no Brasil. O filme apresenta uma ficção baseada na Bíblia. Há críticas ácidas em relação crenças e valores religiosos, e as reações não foram poucas.


Porta dos Fundos é conhecido por trazer conteúdos bastante provocativos e ácidos, em forma de humor, e com críticas contundentes. A título de curiosidade, por algum tempo seu canal no Youtube foi o mais acessado no Brasil. Atualmente, tem 16 milhões de seguidores. Seu site também é bastante visitado; publicam vídeos diariamente.


Em 2018, o grupo também teve um especial de Natal junto à Netflix, com o título “Se beber não ceie”. Ganharam o Emmy Internacional de melhor comédia. Na época, não houve tanto estardalhaço como no filme deste ano. Parece que os tempos são outros aqui em Pindorama.


A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara aprovou no dia 17 de dezembro, o requerimento que convida um representante da Netflix a prestar esclarecimentos à opinião pública. O tal dispositivo aprovado é de autoria do deputado Júlio Cesar, do partido Republicanos. O político, também pastor, baseou-se no artigo 208, do código penal, para caracterizar a produção como vilipêndio, “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Outros deputados também defenderam medidas judiciais pois, como disse o próprio Cesar, “o filme é uma verdadeira afronta aos valores cristãos, ultraja à fé e a figura de Jesus Cristo e dos discípulos”. [1]. Houve alguns muitos abaixo-assinados online contra a exibição do filme e pedido de retratação pública.[2]


Ao contrário do que se esperava, Netflix e Porta dos Fundos fecharam um acordo na produção de um novo Especial de Natal, em 2020. Ou seja, maior visibilidade garantiu um novo contrato. A repercussão envolvida, dos que tentaram reprimir o conteúdo, causou o chamado Efeito Streisand, a saber, na tentativa de remover ou censurar um tipo de conteúdo, acabou atraindo mais visibilidade; logo o público deu mais ibope, aumentando a popularidade. A publicidade foi tamanha que, segundo fontes não oficiais, tornou-se a maior audiência de conteúdo produzido no país pela Netflix.[3]


Baseada nas críticas e tentativas de afastar o filme da plataforma de streaming, a própria Netflix soltou uma nota pública: “Valorizamos a liberdade artística e o humor por meio da sátira nos mais diversos temas culturais da nossa sociedade e acreditamos que a liberdade de expressão é uma construção essencial para um país democrático".[4]


O filme toca numa relação homossexual entre Jesus e o diabo, sim, é polêmico. Há também relações de adultério e liberdade sexual feminina. Outro ponto importante é que Deus e seu filho são demasiadamente humanos, incluindo a própria Maria que suspostamente teve relação carnal, e não divina, com o próprio Criador, traindo José.


Agora vamos pôr os pontos nos is. O artigo art. 208, do código penal brasileiro, diz: ”Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Cinematografia é arte, ok? Se estamos de acordo, arte é ficção. Tudo bem? Se é uma ficção, algum tipo de representação sobre algo, é condenável perseguir uma produção artística por que houve sátira, que não agrada a todos, a algo referente à religião? Se a gente seguir o código não existe essa condenação à arte sobre qualquer tipo de conteúdo de livre escolha.


Tem mais: “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, a Netflix é empresa privada ou órgão público? O cidadão e consumidor não escolhe pagar pelo conteúdo? Alguém é obrigado a tal? Assim, eu, você ou seu vizinho tem liberdade de escolha. Não existe essa coisa de manifestação pública ofensiva. Isso não procede!


Agora vamos à Constituição, Lei maior, lembremos, no seu art. 5°, dos Direitos e Garantias Fundamentais, inciso IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; inciso VI “É inviolável a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E mais, art. 220, parágrafo 2 “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Por fim, temos o artigo 19, da Declaração dos Direitos Humanos: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.


Como visto, há elementos suficientes para não atacar o Porta dos Fundos ou a Netflix: legalmente estão amparados pelo Estado Democrático de Direito. A obcessão de censura-los se sobrepõe à jurisprudência; o que há é uma tentativa de impor, na realidade, uma punição moral usando, debilmente, a lei.


Ora, ora, ora, ser cidadão tem a ver com direito e não com moral. O leitor habita um país em que sua moral e o Direito podem não se alinhar, e no qual este último tem prevalência, goste você ou não. Por exemplo, se alguém faz um filme em que Deus é uma mulher, você tem direito de achar imoral, do ponto de vista de sua crença e fé pessoal, mas isso não te permite entrar com um processo legal contra o diretor do filme ou a empresa que financiou a obra cinematográfica. Posso fazer uma peça de teatro, pintar um quadro, gravar uma LP sendo Deus uma mulher, gay, negro, mulçumano, judeu, seja lá o que for. Arte é liberdade e seu limite é a Constituição.


O ponto acima é perigoso porque quer colocar a questão da moral, de entidades e fieis, acima do direito laico. Numa sociedade complexa como a nossa, com várias morais em disputa – religiosas ou não - não podemos criar escala de hierarquia entre elas: somos todos iguais perante a lei. Qualquer tentativa de impor um padrão de pensamento, uma moral abrangente e absoluta, publicamente, seja ela qual for, é um atentado contra a liberdade individual e, consequentemente, um favorecimento ao aumento do despotismo.


Não é porque existe uma maioria, de algum tipo de pensamento ou crença no país, que ela deve se sobrepor e solapar a crença individual, de produzir algum tipo de conteúdo ou livre manifestação, não atacando, claro, os princípios da própria constitucionalidade. Simpatize o leitor ou não, estamos calcados na defesa individual, pois as leis democráticas são liberais: direitos individuais são, a priori, anteriores ao próprio contrato social.


Não podemos perder de vista, e isso é de extrema importância, que a Democracia liberal não é a defesa da maioria, mas do indivíduo. Por isso, a fala de Eduardo Bolsonaro, senador e filho do presidente Jair Bolsonaro, é repugnante:“ Somos a favor da liberdade de expressão, mas vale a pena atacar a fé de 86% da população? Fica a reflexão “.[5]


Pior ainda é o comportamento do Ministério Público do Rio de Janeiro, o próprio Estado, numa atitude descabida, aceitar uma ação pública contra a suspensão do filme, escancarando a anarquia jurídica do país. O nome da promotora é Barbara Salomão Spier, que deu a seguinte nota: “Fazer troça aos fundamentos da fé cristã, tão cara à grande parte da população brasileira, às vésperas de uma das principais datas do Cristianismo, não se sustenta ao argumento da liberdade de expressão. No caso entelado é flagrante o desrespeito praticado pelos réus, o que não é tolerável, eis que ultrapassam os limites admissíveis à liberdade de expressão artística”.[6]


Quando o próprio Estado ecoa as vozes das maiorias, em detrimento de minorais e da liberdade, estamos indo para um caminho muito perigoso. Isso abre brecha a uma tirania da maioria, que tende a sufocar as minorias que pensam, agem e têm gostos diferenciados. E quando chegamos a tal ponto, damos uma colher de chá a líderes autoritários que falam e governam em nome da multidão, rechaçando os poucos, tirando sua cidadania, dignidade, humanidade e relegando-os à condição de párias. Não só políticos, mas também figuras do judiciário que se comportam politicamente, ferindo o princípio republicano da separação dos poderes. Esse é o grande risco a uma apologia à igualdade extrema, seja ela qual for, que se reconcilia com uma pseudo unanimidade social. É o discurso populista que incita uma “vontade do povo”.


Quando pessoas aceitam o discurso de que, se a maioria do país é cristão, logo todas as outras denominações devem se curvar e aceitar o pensamento da maioria, abre-se a porta da barbárie; definha a livre expressão e a discordância. Violência e intolerância acabam sendo justificadas.


Meus caros, se não gostam do conteúdo do Porta dos Fundos ignore-os, ninguém é obrigado a gostar de tudo que é produzido. Se não gosta da Netflix, cancele a assinatura. A arte não é necessariamente feita para agradar; ela não tem uma essência a priori: pode causar incômodo ou boa dose de felicidade. Não podemos é atacar, inconstitucionalmente, as expressões artísticas porque ofende a moral privada (indivíduo ou grupo). Algo só pode ser condenável legalmente quando atenta contra os direitos estabelecidos pelas constituições e tratados internacionais, pois até a liberdade tem limites, mesmo num país democrático-liberal.


Até a próxima!


Fonte da imagem: https://pipocamoderna.com.br/2019/12/juiza-refuta-pedido-de-censura-ao-especial-de-natal-porta-dos-fundos-basta-nao-ver/


[1]https://br.noticias.yahoo.com/deputado-acusa-netflix-de-afrontar-valores-cristaos-em-especial-de-natal-104533484.html guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAAbz_hWA1TcH7mDCDheBF8eeigJciGpMXQTCh0iYFL75U0raAxzRzA-RrxlWJDlgzy00OPiY9yWL7D9nDLfTG4kmoyakalICbiolJOGy1mfKXpn9zvpqFmTyz4NQVBuwRHqr0BJidtRTzwzkiC6HI-gEhoAcjf6ZGOIQt-Wir86q


[2] https://www.change.org/p/diego-rox-tirar-do-ar-a-s%C3%A1tira-especial-de-natal-do-porta-dos-fundos


[3] https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/especial-do-porta-dos-fundos-na-netflix-bate-recorde-e-e-confirmado-para-2020/


[4] https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/tv/noticia/2019/12/polemica-envolvendo-especial-de-natal-do-porta-dos-fundos-repercute-na-midia-internacional-ck4bidijl02vp01qhn4cpdp1t.html?fb_comment_id=3184487684900077_3184613104887535


[5]https://br.noticias.yahoo.com/deputado-acusa-netflix-de-afrontar-valores-cristaos-em-especial-de-natal-104533484.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAAbz_hWA1TcH7mDCDheBF8eeigJciGpMXQTCh0iYFL75U0raAxzRzA-RrxlWJDlgzy00OPiY9yWL7D9nDLfTG4kmoyakalICbiolJOGy1mfKXpn9zvpqFmTyz4NQVBuwRHqr0BJidtRTzwzkiC6HI-gEhoAcjf6ZGOIQt-Wir86q


[6] https://revistaforum.com.br/cultura/censura-mp-do-rio-quer-suspensao-do-especial-de-natal-porta-dos-fundos/

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