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A SOMBRA DO VENTO




Por que, mais uma vez, escrever sobre Covid-19? Já não estamos de “saco cheio” de intérpretes e mais intérpretes do assunto; notícias e mais notícias? Verdade... Também não aguento mais. Mas podemos nos arriscar a tentar compreender nós, seres humanos, antropologicamente a partir da doença?


Supondo que sim, explico a metáfora do título: “A sombra do vento”, 2001, é um romance de um escritor espanhol chamado Carlos Ruiz Zafón. Sempre gostei desse título: gostei tanto do livro que cheguei a roubar as iniciais de uma personagem para escrever poesias com sua rubrica (pseudônimo). A metáfora denota uma presença, mas uma presença invisível.


A segunda questão sobre o título, também metafórica, é sobre o “medo do desconhecido”, o medo daquilo que não conhecemos e que, também, não vemos ou enxergamos (presença invisível). Trata-se de nos perguntar como, em diferentes épocas, e também em diferentes lugares, as pessoas lidaram com a epidemia (na Antropologia Clássica usamos o termo cultura para falar sobre a representação, pensamentos, ideias e comportamentos ou hábitos que as pessoas de diferentes lugares mantêm)?


Li, certa vez, que, na época da febre amarela no Brasil, o governante de um estado – se bem me lembro era o Rio de Janeiro – ordenava que o exército disparasse tiros de canhão em esquinas para dispersar o nevoeiro, a bruma ou miasmas que, segundo a população, eram “ventos da peste”, tanto anúncios da doença quanto seus transmissores.


Está para sair um artigo de um antropólogo brasileiro reconhecido internacionalmente pela sua dedicação ao estudo de etnias indígenas brasileiras, Renato Athias, e uma antropóloga chamada Ana Letícia Veras, em um ebook (que também participo) chamado “Práticas Sociais no epicentro da epidemia do Zika”. Em seu artigo, o autor e a autora trazem relatos das experiências de indíos de uma comunidade Pankararu que vivem em Pernambuco. O vento aparece no artigo como um elemento não humano que vincula pessoas, seres espirituais (Deus, Encantados) e a doença causada pelo Zika e pela Chikungunya.


Até aqui, um cético ou uma cética – ou apenas uma pessoa arrogante e descrente – podem pensar “ah, mas o primeiro exemplo é sobre o “passado” e indíos são “primitivos”. Ok. Avancemos.


Um amigo da área de Educação Física recentemente me alertou para o risco de contrair Covid-19 pelo ar, pois artigos da sua área indicavam que existe o risco real de que numa caminhada, alguém acabe respirando “o vento” ou o ar de outra pessoa que também esteja correndo na sua frente. Ele também falou do “vento” em aglomerações ser “transportado” para outros ambientes. O que me deixou um tanto duvidoso sobre as fontes dele. Mas decidi pesquisar mais sobre o assunto.


Uma irmã minha, socióloga, indicou uma matéria recente exibida pela BBC Brasil que divulgava uma pesquisa realizada por cientistas europeus sobre contaminação pela Covid-19 por meio do ar em ambientes fechados, como supermercados. Na matéria, a matemática é a linguagem utilizada para representar e calcular as partículas de Covid-19 no ar, demonstrando quanto tempo em média leva para o vírus, finalmente, se “assentar”, caindo no mesmo chão em que pisamos (é... parece que a “crença” sobre os ventos da peste e a crença dos índios e índias, afinal, não estavam tão distante da realidade...).


A arte, por seu turno (ou apenas “ficção” e mídia de massa), também representou “o vento” como “meio de transporte” no longa “Fim dos tempos” (do sempre surpreendente M. Night Shyamalam), lançando em 2012. Em síntese, uma doença misteriosa se transmite pelo vento e, normalmente, o evento que a anuncia é o movimento de árvores e matas em campos, fazendas ou florestas, mas não somente. Cada pessoa que é “tocada” pelo vento é levada a cometer suicídio do jeito que puder!


Já em práticas de meditação, tenho aprendido que o vento está sempre presente e se liga a nós pela respiração, sendo constante e fundamental para a vida. Apesar de a frase anterior parecer “forçada”, cito-a para inserir a cultura asiática, da qual se extrai, até onde sei, essa ideia de cinco elementos (terra, água, fogo, ar e éter). O que quer dizer que temos mais um povo ou conjunto de pessoas que se ligam ao vento como componente fundamental para a existência não apenas humana, mas também não humana.


Eis que, finalmente, chegamos ao “clímax” deste breve ensaio: inusitadamente proponho uma reviravolta (“peripécia”): nenhum dos sentidos dados ao vento é “real”, mas sim “usual”. Na medida em que o vento aparece em cada exemplo dado, o que temos são descrições do comportamento de doenças e de sua relação com o vento e, por conseguinte, com outros seres (humanos e não humanos). Além das descrições, existem as “imputações” (“hipostasia” na filosofia) que as pessoas adoram fazer sobre o que é, e que apenas é, independente de nossos julgamentos/avaliações: “o que a Covid-19 nos ensina”? O antropólogo, filósofo e sociólogo Bruno Latour tem dito que o vírus “nos ensina” que podemos, sim, frear a economia e o desenvolvimento que pareciam “incontroláveis” para seus defensores baseados no “realismo econômico” (nada mais absurdo, por exemplo, mesmo que crítico ao capitalismo, que o título do livro “a incontrolabilidade ontológica do capital”, de István Mészáros). Em outras palavras: Latour está dizendo que a economia não pode continuar como valor moral “real” que se sobrepõe às preocupações ambientais.


Em minhas palavras finais, aqui (e assim espero), penso que podemos “usar” o que “aprendemos” para alterar nossas práticas e propor mudanças em escalas espaciais amplas, baseadas no que tenho chamado de solidarismo, em detrimento de capitalismo, comunismo, socialismo ou anarquismo. Mas isso é assunto para outros “ares”. Adianto, porém, que solidarismo é o que em “Nós somos a onda” (Netflix, 2019) se chama de “ingenuidade” em oposição ao realismo capitalista; no marxismo, charmar-se-ia de “voluntarismo”; e, de modo pessimista, concordo com a ideia de O poço – El Hoyo - (Netflix), 2020, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, segundo a qual não existe solidariedade espontânea (“óbvio!”).

“Isso é tudo, pessoal!” Bons ventos para tod@s!

Nota: Quem quiser acesso às fontes das informações que eu menciono ao longo do texto, basta entrar em contato comigo pelo email gabrielmop@hotmail.com ou pelo meu perfil no Instagram: @gabriel.f.brito ou, ainda, pelo próprio Soteroprosa.com


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