Eu percebi que você clicou no link que acabei de enviar e provavelmente ficou curioso com o desdobramento do título. Você achou mesmo que eu teria uma resposta... sério? Ou melhor, você achou que alguém teria essa resposta? Diante de uma experiência de profundo sofrimento, aquele tipo que nos deixa sem chão e até mesmo sem voz, o que em filosofia e em psicanálise ganha nomes como ANGÚSTIA, é comum acreditar que alguém lá fora sabe algo que não sei, algo sobre mim que até eu mesmo desconheço. Talvez esse alguém explique o que eu sinto, ou talvez carregue no bolso a tão desejada verdade sobre meu sintoma, sobre meu próprio corpo. Afinal, não é por isso que buscamos terapia? 1) queremos que a dor passe 2) procuramos alguém que possa remover essa dor 3) queremos recuperar nossa “normalidade”. Ou seja, nos comportamos como se a terapia fosse uma forma de conhecimento positivista como qualquer outra, a exemplo do médico que conserta o joelho dolorido ou o dentista que extrai o dente estragado. Será tão simples assim?
Se o SINTOMA que tanto me consome é uma grande neblina, uma densa e obscura névoa que envolve tudo e todos, a verdade é apresentada como uma espécie de guia, um Farol, ao menos é assim que nos ensina o modelo cartesiano clássico, onde a racionalidade é um elemento sábio que nos conduz ao caminho certo e define os contornos da nossa própria subjetividade, direcionando os rumos de um corpo confuso, estranho e pouco confiável. E quem seria o porta-voz dessa RAZÃO? E a resposta é: o ESPECIALISTA, aquele que sabe o que eu não sei, como no caso do médico que examina meu joelho. Ele conhece a causa, ele sabe o porquê, o fundamento, ele sabe o que me incomoda, além dos caminhos necessários de retorno à NORMALIDADE. Se eu sofro existe uma causa, não é? Talvez um especialista possa me ajudar nessa jornada causal, nessa busca por uma origem, um fundamento, um começo. Alguém precisa me guiar pelos labirintos do meu próprio corpo, apontando as armadilhas, os buracos e as falhas pelo caminho, além do próprio sentido da caminhada.
É meio previsível a crença de que a VERDADE é um tipo de saber, uma espécie de traço que pode ser nomeado e descrito, o que em filosofia se chama de Verdade Epistêmica. O sintoma, entendido como essa forma de verdade, também é apresentado como se fosse uma espécie de saber, como um conjunto sistemático de definições, muitas vezes elaborado como um discurso. Em psicanálise, ao contrário, a verdade nunca foi um saber, muito menos um elemento discursivo, mas justamente o completo oposto. A verdade é aquilo que foge daquela cadeia de significantes que chamamos de linguagem, postura que não é exclusiva da psicanálise, mas também das outras duas técnicas da suspeita (genealogia e dialética). A verdade transborda, escorrega, sendo uma das primeiras definições de Lacan. Algo escapa e por isso o corpo procura alternativas, quase como uma forma de compensar um tipo de lacuna. A outra definição lacaniana, essa mais sofisticada, presente no seminário 23, diria que a verdade não escapa à linguagem... a verdade INVADE a linguagem, comprometendo seus contornos, zombando de suas alternativas. Existem, portanto, duas formas de encarar esse conceito na psicanálise, mas todas envolvem a constatação de que a verdade não é um assunto epistêmico, mas algo bem mais sutil e liquido, algo que é impossível de definir. Por isso que é meio estranho, quase absurdo, comparar a psicanálise com uma ciência qualquer, ou seja, com uma abordagem que relaciona verdade ao saber.
Essa postura não epistêmica da psicanálise, encontrada também na fenomenologia e em correntes do vitalismo filosófico, produz cinco consequências inevitáveis:
1) Não existem fórmulas ou estratégias prontas, mas um trabalho constante e criativo de remodelagem. Psicólogos e psicanalistas apenas incentivam a criatividade corporal, além do seu poder de produzir estratégias de sentido, ou seja, no final das contas a resposta não brota do chão, muito menos cai do céu, mas surge desse próprio pedaço de matéria que você chama de corpo.
2) O sofrimento é sempre uma experiência complexa, difusa, embora totalizante, quase como assistir um filme em que vários elementos se combinam de uma maneira simultânea (fotografia, trilha sonora, figurino, performance, direção, etc). Sofrer jamais é pontual, mas um mergulho de cabeça em uma rede incrível de afetos, o que torna o sofrimento uma totalidade única e indivisível, por mais divertido que seja apontar causas e detalhes.
3) O sofrimento é uma forma criativa de produzir sentido e não um simples problema ou falha. O sintoma já carrega uma verdade embutida, um trabalho do corpo, digamos assim, cabendo ao psicanalista garantir que essa corporeidade encontre melhores caminhos, talvez menos dolorosos ou agressivos. Em outras palavras, sofrer é dar sentido, ainda que de uma forma um pouco desengonçada. Mesmo que pareça meio enigmático, existe um sentido no não sentido, uma harmonia no caos, uma coerência no incoerente, uma fala no silêncio.
4) Não existe cura, porque nunca existiu doença. O sintoma não é como uma dor de dente ou de joelho, mas algo que define sua própria subjetividade, um suporte da sua própria experiência. O objetivo de uma análise, portanto, não é a cura, mas a ressignificação, sendo nada mais do uma estratégia que acolhe as formas de sofrimento, ao invés de simplesmente eliminar sua presença.
5) O sintoma não é algo orgânico, mas também não é mental. A psicanálise, ao contrário da psicologia, não trabalha com a mente. O campo da subjetividade, o espaço do mental, digamos assim, é entendido aqui como apenas uma miragem, um tipo de ilusão de ótica produzida por um circuito de afeções. Em outras palavras, essa coisa que você chama de VIDA INTERIOR, como sendo um tipo de posse, quase uma propriedade sua, não apenas é uma ficção, como muitas vezes é um obstáculo no caminho de um psicanalista. A psicanálise não é um exercício introspectivo, de um RETORNO A SI, já que esse SI nunca existiu. Não existe a separação entre dentro e fora, indivíduo e mundo, muito menos entre corpo e mente. Falar de mim, na verdade, é falar do outro, daquilo que não sou, ou seja, falar de mim é falar do próprio mundo.
Apesar de tudo o que foi dito a respeito dessa tal de verdade não epistêmica, e o quanto ela sempre escorre de alguma forma, é comum, por outro lado, o esforço de sistematizar formas de sofrimento, sendo uma estratégia previsível e muito espontânea, quase um esforço desesperado. Com a pandemia do Covid-19, e toda sua montanha russa emocional, não é diferente, o que já era de esperar. Ciências como a psicologia acabam seguindo esse percurso sistematizante ao produzir diagnósticos, ou as ciências sociais com sua cadeia explicativa carregada de exemplos políticos, ou até mesmo indivíduos não acadêmicos em conversas de corredor. Ainda que as estratégias sejam diferentes, no fundo, bem lá no fundo, todos querem paz, estabilidade e a sensação rara de controle, ou seja, todos querem formas de aliviar o acaso, o estranho, o incomodo. Segundo a filosofia nietzschiana, em especial no seu tão famoso livro Sobre Verdade e Mentira, a primeira estratégia diante da angústia do desconhecido é nomear o sofrimento, fazendo dele algo de coletivo, uma coisa que pode ser falada, entendida e compartilhada. Na minha própria área, nas ciências sociais, esse impulso também é comum, ao dizer, por exemplo, que o sofrimento da pandemia se resume a certos grupos específicos, principalmente aqueles mais excluídos (negros, mulheres, etc). É claro que a pandemia afeta grupos de formas diferentes, e desiguais, mas além dessa abstração, desse esforço genérico, percebemos na prática o quanto o Coronavírus nos afeta de um jeito singular, já que o sofrimento é uma experiência totalizante e não parcial. Claro que elementos em comum existem, mas ninguém experimenta o sofrimento de forma recortada, e sim como um todo, o que produz sempre uma forma única de sofrer. Exemplo: ninguém sofre POR CAUSA do Coronavírus. A pandemia, dentro da experiência que me define, se mistura com minha recente dor de cabeça durante a semana, minha discussão com minha esposa, os problemas na infância que tive com minha mãe, o desconforto do sapato que acabei de comprar e não serviu em meu pé, a crise alérgica que tive por conta da faxina que fiz em minha casa, a dor de barriga daquela ultima feijoada que comi ontem à noite, a nostalgia depois de ter assistido um programa famoso da minha infância, etc. Ou seja, a experiência do sofrimento é um todo, uma combinação única de infinitos vetores. Acolher o sofrimento, não é acolher uma causa, mas um universo inteiro carregado de um sentido apenas aguardando formas de ressignificação, embora seja politicamente válido fragmentar o sofrimento em busca de pontos em comum, como as ciências sociais gostam de fazer.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://oglobo.globo.com/saber-viver/dez-dicas-para-lidar-melhor-com-ansiedade-22955215