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A REBELIÃO DAS MASSAS

A Rebelião das Massas [1] foi escrito pela primeira vez em 1929, pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset. O livro é uma crítica aos movimentos de massa na Europa, o bolchevismo e fascismo, e o iminente perigo dessas aglomerações para a Democracia liberal e os valores da civilização moderna. Ele detectou uma decadência da vida pública, principalmente desde o século XIX, que envolveu a esfera política, intelectual, moral, econômica e religiosa. Essa degradação colocou a massa em pleno poderio social, ganhando muita força. Pôde constatar a emergência de regimes totalitários, anos depois, e a implantação de ditaduras, como a espanhola, solapando as instituições liberais e democráticas.


O foco desta resenha são os capítulos I, VI, VII e VIII da primeira parte do livro. Em outra oportunidade irei adentrar em outros capítulos.


A ascensão das massas ou multidões não foi exclusivo daquele período histórico de Gasset. De tempos em tempos, em momentos de crise, as massas tornam-se desgovernadas e são capazes de destruir qualquer coisa. Rebelam-se. A novidade do século XX é a incessante aglomeração das maiorias, em todos os lugares, de forma permanente, engolindo as minorias (não no sentido identitário contemporâneo).


O autor se incomodava com o as aglomerações na esfera política, nas lotações de teatros, museus, hotéis, cafeterias, transportes. Essa multidão seria inculta e ignorante. Não tinha sido preparada para esses lugares. Por que essas aglomerações não eram frequentes e passaram a ser? Porque ocorreu uma mudança gradual, nos pilares principais da sociedade pós - medieval, incapaz de moderar o espírito comum. Este se vê agora com ímpetos ilimitados.


Multidão é um conceito quantitativo. Assemelha-se à massa social. Em qualquer sociedade existe minorias e maiorias. As primeiras são pessoas e grupos organizadas, seletas e pouco uniformes. Os últimos são desorganizados e desqualificados; são maiorias e horrorizam-se com singularidades.


A massa é o homem médio, medíocre. Não tem a ver com classe social, mas com classes de homens. A multidão ou massa social é a reunião das massas. Ganham poder e passam a ter uma qualidade: de ser genérico. Fator psicológico da massa: “ele não se dá valor – bom ou mau - por motivos especiais, que se sente como todo mundo, e, no entanto, não se angustia e gosta de se sentir idêntico aos demais” (p.81). Portanto, a massa adota a homogeneidade.


O homem massa ascendeu aos postos que eram reservados às minorias. Suplanta-as. E esse é um grande perigo eminente à civilização. Na política, houve o império político das massas. As minorias, os representantes políticos, deixaram de ser os protagonistas e passaram a ser malvistos. As massas acreditam que elas podem ditar os rumos da sociedade, através de suas aspirações e gostos universais.


“O característico do momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem a audácia de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe em toda parte [...] a massa sufoca tudo que é diferente, magnânimo, individual, qualificado e seleto. Quem não for como todo mundo, quem não pensar como todo mundo, corre o risco de ser eliminado. E é claro que esse ‘todo mundo’ não é ‘todo mundo’ (p.84-85).


O súbito desenvolvimento material do século XIX, fez o homem massa adquirir e resolver problemas econômicos com mais facilidade do que outrora. O homem médio, ao ver melhoras no padrão de vida, sem tanto esforço, começa a enxergá-la sem impedimentos. Sem limites. As barreiras sociais, os estamentos e as classes, que antes limitavam as pessoas, perderam força, e isso possibilitou rompimentos fáceis.


O desenvolvimento da técnica (ciência e indústria) e sua efetiva força no século XIX, autorizou que o ser medíocre desfrutasse, sem nenhum controle, dos ganhos materiais criados nos séculos anteriores. Com isso, o mundo para ele deixa de ter algum sentido de contenção. Acredita que tudo irá ser melhor, que tudo o mais irá favorecê-lo. Coloca-se sempre na posição de privilegiado por Deus ou pela natureza. Não lhe passa pela cabeça as coisas que foram construídas, com muito esforço e dedicação, por homens e mulheres geniais que permitiram uma vida material e social mais confortável.


“ as paisagens estão plenas de possibilidades, que ainda por cima é segura, e tudo isso rápido, à sua disposição, sem depender de seu esforço prévio, assim como temos o sol no alto sem tê-lo carregado até lá” (p.130).


“[...] aprendeu a usar muitos mecanismos da civilização, mas ignora desde a raiz os próprios princípios da civilização” (p. 139).


Para o homem novo tudo “caiu do céu”. Eis a nova psicologia do menino mimado: expansão de desejos vitais e ingratidão pela facilidade da existência. O menino mimado, que olha o mundo como obrigado a fazê-lo feliz a qualquer custo, deseja expandir apetites e não se preocupa em dar nada em troca. Ele não conhece deveres e obrigações: só quer direitos. O mundo passa a girar ao redor dele. Não enxerga ninguém como superior. O que ele faz é sempre nivelar todas as pessoas ao seu patamar.


O ânimo do homem massa é dar as cartas no século XX: irrestrita preocupação com bem estar material, sendo, ao mesmo tempo, ingrato com as verdadeiras causas de seu conforto. Sem capacidade de ter uma mente solidária, divinizasse!


Nenhuma estrutura exterior ao homem massa lhe causa sensação de limite. Ele só escuta a si. Fechou-se! Não reconhece nenhum tipo de transcendência. Sente-se soberano em sua vida. O homem vulgar difere do homem excelente, pois este exige muito de si mesmo, e percebe suas limitações. “Viver à vontade é de plebeu; o nobre aspira à ordenação e a lei”, nas palavras de Goethe.


O nobre é esforçado por natureza. Busca excelência. Pauta-se pela disciplina, pelos deveres, e não por direitos. Galga sabedoria. Sua nobreza é sinônimo de vida esforçada. O homem massa, ao contrário, é vulgar e inerte: vive em sua própria perpétua imanência.


O homem massa do século XX quer suplantar os nobres. É o espírito do tempo decadente. O ser mediano sempre existiu, mas este, outrora, era mais dócil e entendia seu lugar e suas incapacidades. Tornou-se, fatalmente, um motorista desgovernado. Nem os fatos, nem as pessoas o seguram. Ele cria o seu próprio mundo. A sua lente é sua única verdade.


O paradoxo do século XX é que a existência, o mundo, abriu enormes possibilidades ao homem médio; ao mesmo tempo sua alma se fechou. Em outras palavras, há tantas portas, mas nenhuma orientação. Com isso, abre qualquer passagem e estraga tudo o que vê. Não se importa com as consequências. Sente-se perfeito. É vaidoso. É vulgar. E põe sua vulgaridade como direito, como norma. Por isso a época do império da vulgaridade intelectual.


O homem medíocre ou vulgar acredita que pode dominar ou saber sobre tudo. Não tem humildade de reconhecer a superioridade alheia. Não sabe dizer não sei.


“Hoje, o homem médio tem as ‘ideias’ mais taxativas sobre tudo o que acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu a audição. Para que ouvir, se já tem tudo dentro de si? Já não é tempo de escutar, mas ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública na qual não intervenha, cego e surdo como é, impondo suas ‘opiniões’” (p.144).


O que o homem massa chama de ter “ideias” nada mais é do que um descompromisso com verdades factuais e regras do jogo. Deixou de lado as normas necessárias à convivência. Ignora princípios de legalidade civil. O vulgar ignora a cultura, pois esta existe para nortear as pessoas e a comunidade. O contrário disso é barbárie. Sim, a barbárie é a ausência de normas! Esse novo homem massa do século XX, mobilizado pelos movimentos extremistas, julga-se no direito de ter razão sem razão. De normalizar a imposição das suas vagas “opiniões”. Deseja dirigir a sociedade; ocupar o lugar nos nobres.


O homem massa deseja acabar com as discussões. Seu espírito rebelde é contra o diálogo. Ao não respeitar as regras do jogo, colocando seu adversário como inimigo, odeia o viver junto. Odeia as normas. Odeia os limites objetivos. “Se renuncia à convivência de cultura, que é uma convivência sob normas, e se retrocede a uma convivência bárbara. Suprimem-se todo os trâmites normais e vai-se diretamente à imposição do que se deseja” (p.147).


O hermetismo da alma. Ao escutar só a si e agir de forma totalmente espontânea, apela para uma ação direta, sem filtros, sem mediação. E isso abre caminho para a violência, o confronto. A violência, que deveria ser o ultimo recurso, a ultima razão do homem, torna-se o instrumento principal do homem médio do século XX.


O que é a civilização contra a barbárie? É evitar, a todo custo, usar a violência como prima ratio. A civilização busca reduzir a força à ultima ratio. O modo de operar da massa, historicamente, foi agir de forma direta, e usando a violência como recurso fácil. É seu modo natural de operar. O perigo real e histórico é quando o homem massa ganha protagonismo na vida pública, quando seu espaço torna-se normal, corriqueiro, oficializado. Está decretada a Era da ação direta; a porta de entrada para o inferno social. O caos normalizado. A violência generalizada.


“Toda a convivência humana vai caindo sob esse novo regime, em que se suprimem as instâncias indiretas. No trato social, suprime-se a boa educação. A literatura como ‘ação direta’, constitui-se no insulto. As relações sexuais reduzem seus trâmites” (p.148).


[...]Trâmite, normas, cortesia, hábitos, intermediários, justiça, razão! De que serviu criar tudo isso, criar tanta complicação? Tudo isso se resume a palavra civilização, que através da ideia de civis, cidadão revela sua própria origem. Tudo isso serve para tornar possível a cidade, a comunidade, a convivência [...] (p.148).


É incivil ou bárbaro aquele que não conta com a vontade de conviver, com a própria civilização, que nada mais é do que contar com a existência dos demais. Associar-se. O contrário disso é barbárie. Dissociação. A massa não deseja a convivência. Ela quer homogeneidade. Ela não deseja a representação política da minoria eleita. Ela é tirana, pois seu único desejo é da maioria outorgando a própria minoria. O grito como modus operandi. É o império da quantidade. É o eco do mais forte. Ela não tolera oposição. Deseja governar tudo e desprezar as diferenças, as regras do jogo, os princípios liberais, as instituições indiretas.


Se olharmos para hoje, em pleno século XXI, não estamos muito distantes das ideias do filósofo espanhol. Estamos num período, hipermoderno, por suas próprias feições, onde o homem e a mulher medíocre ocupam posições importantes na sociedade, em espaços públicos, na internet e nas diversas esferas sociais, controlando e direcionando o espírito da vulgaridade. A normatização da delinquência moral, intelectual, política tem contribuído para disseminar a barbárie.


Seja no âmbito individual, ou em aglomerações desgovernadas, que age nas redes virtuais ou fora dela, o humano médio, medíocre, não tem mais senso de princípios, valores, moderação, respeito e apelo à convivência. Sua forma de pensar é totalitária e genérica. Fala de liberdade, interesse do povo, de pátria, Deus, sexualidade, religião, em nome da sua visão de universalidade, de padrões abstratos impostos. Não escuta, não enxerga. Seus olhos e ouvidos são dormentes. É um autocentrado. Egocêntrico.


O homem médio do século XXI não tolera admitir sua inferioridade, suas fraquezas, limitações. Tem medo de tomar uma queda. Tudo que é visto como superior ele deseja nivelar ao seu próprio nível. Qualquer noção de ascendência que o coloque na posição de incapaz é vista como uma afronta moral à sua própria vida. Ataca seu opositor como se fosse seu inimigo. Sente-se perseguido.


O homem médio encontrou o espaço público com muita força na internet, no twitter, facebook, youtube, blogs, instagram. A democratização do ciberespaço possibilitou o eco dos tolos e vulgares. E sempre haverá espaço para brotar novas monstruosidade. Encontrara o seu lugar junto com seus párias morais e intelectuais, podendo disseminar sua verborragia nefasta que ataca a tudo e a todos, destruindo reputações, pregando anticientificismo, anti-intelectualismo, antipolítica e a intolerância, e todos os valores e princípios de moderação e convivência necessários para a sobrevivência da civilização.


Ao ignorar os jogos de linguagem, da verdade e dos fatos, e pregar mentiras e pós verdades, o homem massa contribui para aprofundar a anomia moral social. Ao dar espaço para intolerantes atacar os princípios da tolerância, assassinando o conhecimento, a arte, a literatura e as regras sociais, abre-se as portas à consecução de estados totalitários ou semi totalitários, governados por homens médios, com o espírito da mediocridade.


[1] ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Campinas, SP: Vide Editorial, 2016.


Link da imagem: https://medium.com/@fabricioundr/a-rebeli%C3%A3o-das-massas-nota-sobre-o-cl%C3%A1ssico-de-jos%C3%A9-ortega-y-gasset-aee8942b634b


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