A frase “Cidadão não. Engenheiro Civil, formado, melhor do que você”, se tornou meme após uma mulher confrontar um fiscal que exercendo sua profissão reclamou do fato dela e do homem com quem a acompanhava não estarem usando máscara em local público. A entrevista foi ao ar no domingo 5 de julho de 2020, no programa Fantástico da Rede Globo de televisão.
A frase revela muito mais sobre o interlocutor do que sobre o destinatário. E tem suas variantes, dentre essas, a mais comum “você sabe com quem está falando?”, usada normalmente em situações que se pretende diminuir o outro indivíduo. Vale lembrar que todos são cidadãos perante a Lei e tem direitos e deveres. Entretanto, da segunda parte, dos deveres, falta muito atribuir a responsabilidade a alguns.
A classe média brasileira está em decadência porque se sente muito mais próxima dos ricos ou dos colonizadores do que de fato do proletariado, ou dos mais pobres. Mas se essa classe média perde seu emprego ou tem seus salários diminuídos, sua condição de vida precarizada, ela passa a estar mais perto dos pobres do que dos ricos. Inclusive a mulher do vídeo perdeu o emprego de engenheira química após a repercussão do desacato a autoridade.
Jessé Souza, em “A tolice da inteligência brasileira”, fala um pouco desse jeitinho brasileiro que deu errado e atribui essa conduta do “Você sabe com quem está falando” ao racismo de classe. Portanto, a um instrumento subentendido de paz hierárquica que isso contribui. Como se a frase desse um aval para ser corrupto ou não obedecer a Lei. Como se o privado (o profissional ou os bens adquiridos) fossem mais importantes do que respeitar a lei pública (comum a todos). O teórico diz sobre o “você sabe”:
“É sua desagradável aparição no cotidiano que restaura a paz hierárquica perturbada por quem levou a sério o princípio igualitário e teve que ser lembrado ‘do seu lugar’” (SOUZA, Jessé, 2015, p.75)
Inúmeros exemplos cotidianos podem ser citados. Como quando autoridades policiais (exceto milicianos) abordam pessoas de alto escalão e essas tentam o suborno, ou ainda a elite que sai ilesa de crimes hediondos, poderia aqui citar vários casos. Algo mais comum, empregadas domésticas terem que usar elevador de serviço ou então não poderem comer junto com o patrão ou a patroa ou usar apenas o banheiro designado a ela. Isso não deixa de ser uma espécie de aparthaid e uma lembrança do lugar do subaternizado.
Uma cena que ilustra muito bem esse comportamento é do filme Bacurau (2019, dir. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), por isso podemos considerá-lo anticolonial já que denuncia essa mentalidade de um construto brasileiro que quer ser poderoso, mas não é:
O colonizador, nesse caso, o imperialismo americano, o qual ganhou força depois da segunda guerra mundial. Não se sente nada contemplado e endossa esse afastamento da América-Latina para com os Estadunidenses.
É um modus operante que se espraia também dentro da própria hierarquia do país, os mais abastados, ou os que tem uma condição um pouco melhor se acham suficientemente poderosos para humilhar o outro. Mas só é relembrado de ser colocado no seu lugar quando um outro mais poderoso senta a mesa junto com eles e essa não pode ser dividida com eles. É só lembrar o que acontece com os brasileiros após esse diálogo no filme.
Os “Cidadãos de bem” então devem repensar esses comportamentos hostis e entenderem que não são maiores que a Lei e nem melhores do que ninguém. Sendo assim, é preciso uma revolução das classes dominadas e a abominação a comportamentos como esses. Sem dúvida a demissão da mulher do vídeo foi no mínimo justificável como lição para ela e para outros: isso não será mais tolerado. É preciso se ver do próprio lugar que se fala.
Referências:
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país deixou se deixa manipular pela elite. São Paulo: LEYA. 2015.
Vídeo:
Imagem Bacurau:
Retirada da página 'Um filme me disse.'
Imagem de capa:
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