Por que não ter braço ou não ter perna significa não ser útil dentro do imaginário social? Por que o cego em tiroteio estaria perdido? Por que quando alguém faz alguma bobagem ele ou ela é adjetivado como retardado? Esses questionamentos constituem uma parte do imaginário do capacitismo e esse é o problema.
O capacitismo -como a própria palavra remete- está relacionado à um preconceito com a capacidade de alguém, neste caso, na capacidade de uma pessoa com deficiência (PCD) coexistir em um mundo no qual o normal é considerado não ter deficiência.
Locais em que majoritariamente os filmes não têm audiodescrições, as ruas não têm rampas, as pessoas não respeitam uma vaga reservada e não sabem Libras -apesar de ser língua oficial no Brasil-. Isso é só a ponta do iceberg.
Para além, a sociedade costuma subestimar a capacidade de produção da pessoa com deficiência. Penso no caso do Sthepen Hawking, a esclerose lateral amiotrófica o tornou deficiente, não o limitando em produzir uma complexa ciência e muito menos em amar e ter filhos.
Outro caso interessante de pessoa com deficiência é a Frida Kahlo, por ter se tornado um ícone pop da cultura contemporânea acaba por ter limitada as suas representações como pessoa deficiente, colocada em situações como andando de bicicleta -algo que provavelmente não seria possível na realidade-. [NOTA 1]
Sobre a invisibilização da representação da pessoa com deficiência, sinto que a arte deve exercer a liberdade de releitura. Mesmo assim, devido as pautas identitárias cabe ao autor ressaltar – em entrevista, nota de rodapé, legenda ou outros meios- que a pessoa representada tinha ou tem deficiência, uma vez que são escassas essas representações. [NOTA 2]
Ainda nesse campo de pensar a pessoa com deficiência nos produtos culturais, elas normalmente têm suas pautas limitadas a deficiência. Raramente uma personagem deficiente é vista como alguém talentoso, emitindo opiniões, falando sobre seus gostos, suas raivas, provocando conflitos e paixões. Um imaginário que vai além da arte, refletindo o social.
Entretanto, acredito que existam produtos culturais que mesmo com várias problemáticas a serem questionadas conseguem representar pessoas com deficiência. À exemplo do Artie (interpretado por Kevin Mchale) do seriado musical Glee (2009-2015).
O roteiro conseguiu fugir um pouco desse estereótipo do deficiente apenas como deficiente, suas subjetividades foram exploradas: ele teve alguns encontros e algumas namoradas, exercia seus talentos e confraternizava com suas amizades.
A série Sex education (2019-agora) possui a personagem Isaac, dessa vez interpretada por uma pessoa deficiente, o ator George Robson, ele é responsável pelo plot-twist (a reviravolta) que será o gatilho para a continuidade da série em sua terceira temporada.
Ele é de extrema relevância tanto para o roteiro como para a subjetividade, já que não é colocado no papel de coitadinho, exercendo afetos positivos e negativos como as demais personagens da série.
Nessa mesma linha cito o ator Ryan Haddad, o qual também é uma pessoa com deficiência e interpreta Andrew em The politician (2019-agora). Ele também é o responsável por conflitos contra o personagem principal e muitas vezes se vale da deficiência para barganhar situações.
Apesar dessa ser considerada uma atitude negativa socialmente, se faz muito importante para a série, pois as temáticas rondam a corrupção das personagens para conquistar seus objetivos e sonhos. Perpassando pela ideia de O príncipe, do Maquiavel, em que o fim justificaria os meios.
Mesmo as representações dos deficientes ganhando mais espaço ainda é raro personagens abertamente homossexuais, mulheres, negros, transexuais e outras subjetividades que existem com deficiência. Ou seja, limitando o deficiente nas suas formas de amar e de se expressar no mundo.
Nesse contexto, o imaginário social também não contribui para a exaltação da pessoa com deficiência ou no mínimo um convívio respeitoso e de fato inclusivo, porque são corpos subestimados pela construção social da limitação.
Esse imaginário afeta a compreensão do deficiente como um corpo no mundo. O vendo negativamente na sua deficiência. Por exemplo, quando se adjetiva alguém pela sua deficiência, majoritariamente é uma maneira de limitar todas as possibilidades de adjetivar aquela subjetividade que não é apenas deficiente, mas também o é.
A questão não é pensar o deficiente como não sendo deficiente, mas pensar o deficiente para além da sua deficiência, como se pensa um corpo preto para além da sua pretitude, um corpo gay para além da sua sexualidade e assim por diante. Esses corpos não deixam de ser o que são, mas são mais do que uma característica que o representa.
Como uma pessoa não deficiente que aprende com as pessoas deficientes, acredito que para além de lutar pela acessibilidade básica das pessoas com deficiência, também é muito importante tentar eliminar expressões capacitistas do vocabulário e do imaginário social -algo que está estritamente ligado a linguagem-.
Além disso, consumir produtos culturais e opiniões de pessoas deficientes nas suas mais diversas subjetividades para tentar compreender esse universo é porta de entrada para oportunizar a PCD a estar presente em todos os locais e a viver as mais diversas experiencias. [NOTA 3]
NOTA 1: Indico os filmes A teoria de tudo (2015, dir: James Marsh) e Frida (2002, dir.Julie Taymor), para saber mais sobre as personalidades Sthephen Hawking e Frida Kahlo, respectivamente.
NOTA 2: Para esse parágrafo cabe um texto, algo que pretendo fazer em outra ocasião, entretanto, existem várias discussões aqui no Sotero sobre o papel da arte na cultura e suas subjetividades.
NOTA 3: Aproveito e indico alguns perfis de pessoas com deficiência que muito me ajudam a pensar nessa temática do capacitismo e em outras subjetividades, obviamente que a rede de produtores de conteúdo deficientes é muito maior!
Amada Soares, @arteamare
Gustavo Torniero, @gustavotorniero
Leandrinha Du Art, @leandrinhadu
Victor Di Marco, @victordimarco
Imagem de capa:<https://aventurasnahistoria.uol.com.br/media/_versions/legacy/2016/08/26/venuestatuacapamdnnfnf_widexl.png>