É comum acreditar que o machismo se manifesta através de discursos, narrativas, histórias, conceitos, etc. Por exemplo: “por que uma menina cruza as pernas?”. A resposta do feminismo idealista é simples: ela cruza a perna porque internalizou certas representações do que é ser mulher, provavelmente por conta da televisão ou de histórias que foram contadas. Ao ouvir essas histórias, a menina internaliza estruturas práticas, reproduzindo sempre de um jeito mecânico, quase como uma marionete comandada por forças ocultas. Jane Bennett, ao contrário, segue por um outro rumo, defendendo o que muitos chamariam de feminismo materialista. Nessa abordagem, a menina cruza a perna porque acompanhava os passos da mãe, muitas vezes imitando, de uma maneira desajeitada, o que via diante de si. Nessa série de tentativas e erro, além do contato com outras meninas ao redor, ela começa a desenvolver certos padrões de comportamento, na medida em que define os contornos da própria identidade. O critério, portanto, não é a internalização, mas um processo imitativo, como diria Gabriel Tarde, ou seja, um ritmo horizontal de encontros, trocas e envolvimentos, o que muitos chamam de ontologia plana. É no fluxo das experiências que ideologias se reproduzem, naquele tipo de contato concreto e espontâneo com o mundo ao redor. A estrutura ideológica, na verdade, nada tem de estrutural, sendo muito mais uma rede difusa, complexa e sutil. Nesse terreno “descentrado”, as coisas ultrapassam as fronteiras do discurso, ou até mesmo da representação, seguindo por uma esfera de sentido, aqui chamada de Ontológica. Como consequência de toda essa sutileza, dessa rede dispersa de encontros, a ideologia não é algo apenas que me oprime, me ofende, me ameaça, mas é justamente aquilo que constitui esse “me”, ou seja, as fronteiras mais concretas de quem eu sou e como enxergo a mim mesmo.
Como no próprio Marx, os proletários são presos pela amarra ideológica por causa da maneira como o trabalho é organizado, quase sempre de forma fragmentada e sem qualquer senso de totalidade ou satisfação. A esfera discursiva (representacional) existe, sem dúvida, mas é insignificante se comparada com o nível mais concreto, aquele que envolve detalhes simples como “ir ao banheiro”, “sorrir”, “cantar”, “tomar uma cerveja”, “descrever uma fofoca”, etc. O machismo, da mesma forma, não pode ser entendido como um traço epistemológico, envolvendo argumentos, representações e conceitos, mas sim algo mais materialista, o que chamei aqui de ontológico. Ontologia, ao menos na abordagem fenomenológica, diz respeito ao vínculo de sentido que estabelecemos com o mundo ao redor, sendo um tipo de experiência não-reflexiva, uma espécie de vínculo sólido, espontâneo e inquestionável com a realidade. Todos nós vivemos em um horizonte ontológico, em um espaço confortável de experiências, mesmo aqueles que se dizem críticos. Todos carregam uma esfera sólida e inquestionada nos bastidores, quase sempre um espaço assumido como óbvio, espontâneo e livre de qualquer ataque externo ou contradição. Em outras palavras, todos nós vivemos em um espaço que define a própria substância da nossa identidade, as fronteiras de sentido de quem somos, além do próprio ar que respiramos. Por esse motivo, o machismo não é uma representação, mas sim uma experiência, ou até mesmo uma matriz que organiza esse fluxo experiencial, não sendo um conjunto de ideias e argumentos, muito menos uma simples “visão de mundo”. O machista é machista não porque pensa sobre o machismo, ou porque justifica as práticas em torno de si, mas porque vive em um mundo organizado dessa maneira, principalmente em seus detalhes mais concretos e cotidianos, como acontece em piadas, conversas, jogos de futebol, saídas ao bar, partidas de dominó, o churrasco no final de semana, etc. O machismo é uma forma de socialização, uma maneira de construir laços, além de ganhar identidade, e não um simples argumento ou uma mera forma de interpretar o mundo ao redor. As justificativas nesse cenário são algo raro, principalmente porque tudo já funciona muito bem. Argumentos, conceitos, ideias, ou coisas do tipo, só aparecem quando essa ontologia é comprometida, quando o mundo do homem perde sentido ou é ameaçado de alguma maneira, como acontece com a chegada dos movimentos LGBTQI+ e suas categorias de gênero performáticas e variáveis.
Se, por acaso, o machismo for realmente algo de ontológico, envolvendo uma experiência espontânea, sólida e material, além de um horizonte de sentido que organiza todo um universo de sensações, logo as estratégias de combate do feminismo idealista (debates, congressos, aulas, rodas de conversa) precisam ser substituídos. Não se combate uma ontologia com epistemologia, ou seja, não se combate uma experiência com argumentos. Somente uma experiência muda uma experiência, ou, como diria Espinosa, apenas um afeto transforma outro afeto. Portanto, o que precisa ser feito não é uma reeducação mental dos homens, como se o problema fosse epistêmico, envolvendo nossas formas de conhecimento, como se o machista fosse machista porque ele não estudou o bastante, ou não sabe o suficiente como o mundo funciona. O que deve ser mudado é a própria realidade, os detalhes mais concretos com que ela costura suas linhas de sentido. É o mundo que precisa de outros contornos, da mesma forma que sua rede de relações. É preciso oferecer a esse homem novas possibilidades de conexão, formas que possam substituir, com eficácia, seu horizonte prático, suas condutas machistas. A crítica do machismo sem qualquer alternativa substituta, sem um caminho diferenciado, acaba sendo completamente inútil. Se o machismo for destruído (e deve ser destruído), é preciso sugerir algo no lugar, algo que continue estruturando a experiência daquele homem, mas de uma forma mais aberta, saudável e acolhedora. A crítica pela crítica, o simples esforço de apontar defeitos, falhas, e contradições, mas sem produzir alternativas de nenhum grau, apenas produz mais ódio e mais ressentimento. Se o machismo for uma estrutura de sentido, como proponho aqui nesse ensaio, sua destruição precisa vir acompanhada de outras estruturas de sentido, de outras formas materiais de organizar a experiência. Lembrem que o machismo não tem inicio na relação do homem com a mulher, mas da relação dele consigo mesmo, com os objetos ao redor, com a forma como anda, como bebe sua cerveja, como conta uma piada. O vínculo com a mulher é apenas pontual, se comparado com uma experiência mais profunda envolvendo toda uma realidade lá fora.
O padrão clássico das ciências sociais sempre foi o epistemológico, sempre envolveu a ideia de que as pessoas fazem o que fazem porque não conhecem, ou porque o conhecimento é distorcido ou precário. Sem dúvida, esse modelo é popular, e até mesmo fez sentido em algum momento histórico, mas precisamos agora de novas formas de intervenção, além de novas premissas nos bastidores. Esse modelo clássico (epistêmico), aquele do alienado, da figura que desconhece, deve ser substituída por uma abordagem ontológica, envolvendo aqui a experiência, o corpo e o sentido. O machismo, portanto, não pode ser pensado como uma forma de ver a realidade, ou um conjunto de temas, argumentos e interpretações, muito menos como um simples problema de caráter, mas como uma estrutura de sentido, um vínculo concreto e material com o mundo e consigo mesmo. Acabar com o machismo significa propor novos arranjos ontológicos, novas formas de organizar a experiência e o próprio mundo ao redor. É preciso abandonar o critério epistêmico (de que as pessoas não conhecem e são ignorantes), e o critério ético (de que elas são malvadas), e acolher o critério básico da psicanálise: A Estética. Estética aqui não como sinônimo de arte, mas como corpo, sensibilidade e experiência, ou seja, como ontologia. O machismo é, antes de qualquer coisa, um modo de atribuir sentido ao mundo, uma forma de organizar a experiência, da mesma maneira que um religioso organiza a realidade em torno de sua fé.
Caso os cientistas sociais continuem insistindo em critérios epistemológicos e éticos, o resultado sempre vai ser frustrante, envovendo mais ódio, mais polarização e mais ressentimento. Até com os chamados bolsominions o problema continua. Ou eles são vistos como alienados (e desconhecem a verdade) ou são vistos como malvados (e só pensam em si e no dinheiro). Infelizmente os cientistas sociais se concentraram por muitas décadas nesses dois critérios, perdendo muito tempo, paciência e possibilidades. Além disso, toda essa fixação em critérios epistemológicos e éticos jamais gerou qualquer tipo de resultado, a não ser as clássicas explosões de ódio, medo e tantas outras dores de cabeça. Se o objetivo é realmente transformar a realidade, combatendo formas de intolerância, precisamos entender o modo como os intolerantes vivem, como eles organizam não apenas suas ideias e argumentos, mas também o papel que a intolerância desempenha em seus corpos e em suas vidas práticas. Se investimos tanta energia estudando povos estranhos aos nossos, tentando enteder a forma como organizam suas próprias experiências, como os antropólogos adoram fazer, que tal dedicar a mesma energia estudando "nossos próprios" estranhos, aqueles que não se encaixam no nosso espaço democrático de debates, encontros e alternativas? Eles não são ignorantes e nem malvados... suas explosões de ódio acabam sendo nada mais do que sintomas de um corpo de fundo, reflexo de uma experiencia ontológica comprometida, já que muitos vivem em um mundo inédito, com novas aberturas de possibilidades, além de mudanças muito rápidas. Claro que não podemos tolerar machistas, racistas ou homofóbicos, mas partir de critérios epistemológicos e éticos apenas reforça nosso próprio ego, nosso próprio sentimento de que somos “mais espertos” (epistemologia) e “mais bondosos” (ética). Precisamos, portanto, de um novo critério de combate, um tipo mais eficaz, algo que realmente faça diferença e transforme a vida de todos, nesse caso, preciamos do critério ESTÉTICO em nossas lutas de esquerda, assim como em nossas análises sociológicas.
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https://relevante.news/colunistas/voce-tem-raiva-do-que/