*Por Matheus Peleteiro
O mito grego da Caixa de Pandora trata da chegada da suposta primeira mulher à terra (Pandora) e do suposto surgimento de todos os males do mundo. Para tanto, o mito sustenta que, quando enviada pelos deuses, Pandora não veio só, e, com ela, numa história que agora não vem ao caso, foi enviada uma caixa misteriosa que não deveria ser aberta em hipótese alguma.
Certo dia, porém, cedendo à curiosidade inata aos seres humanos que ambicionam o conhecimento, Pandora abriu a tampa dela e deu vazão a infestação de todos os males do mundo. Quando se deu conta do erro que cometera, fechou a caixa e, acometida pela culpa, condenou a si própria por ter cometido o maior erro da história da humanidade.
Apesar de existirem diferentes versões do final da história, uma delas conta que, assim como sempre acontece quando um erro é percebido, no momento da percepção, já era tarde demais. O mal havia se espalhado e dentro da caixa só havia restado a esperança.
Numa espécie de romantização da desgraça, muitos acreditam que o mito traz a ideia de que a esperança guardada na caixa não significa que, assim como escreveu Kafka, ela existe, mas não para nós, humanos, mas que ela está por aí, em algum lugar, prestes a ser libertada e a curar as feridas criadas pelos males. De modo que, embora Pandora tenha liberado dor e sofrimento no mundo, ela também permitiu que houvesse esperança para a humanidade.
Reduzindo a um ditado popular, o mito da Caixa de Pandora pode sugerir que a esperança é “a última que morre”, porém, é inegável que esse mito tem muitas versões, e a mais crível delas parece sugerir que, de maneira alguma, alguém ousaria abrir essa caixa novamente, e por isso a esperança permanece até hoje guardada.
Quando se traz tal ideia ao cenário brasileiro, a mera palavra esperança, por si só, é capaz de provocar um aperto no coração de qualquer brasileiro esclarecido. E o aperto fica ainda mais dolorido quando se percebe que o discurso que legitimou a vitória do último presidente é fruto da abertura de uma espécie de primeira Caixa de Pandora, que foi arrombada sem trazer esperança alguma. Apenas fôlego àqueles que tiveram as suas brutalidades reprimidas.
Basta um mero diálogo para que se perceba que o alicerce do sentimento de pertencimento — que é disfarçado sob a égide de uma pátria que não existe — reside naquilo que há de mais vil: o ressentimento. Tais indivíduos estão dispostos e se ancorar em qualquer suposição ou mentira que legitime os seus preconceitos, os seus incômodos e os seus privilégios. Estão dispostos a repudiar e difamar qualquer mínima vitória daqueles por quem cultivam repulsa: os excluídos, os esquecidos, as vítimas.
Deste modo, como um exército que prega o ódio e perpetua a ascensão da estupidez, passaram a condenar quaisquer atos minimamente deselegantes para a moral conservadora que os seus pais lhes impuseram à força, e que agora são enfrentados pelas novas gerações como limitações irrisórias.
Por essa razão, mergulharam em acontecimentos que, por algum deslize, acontecem uma vez a cada 365 dias, num raio de mais de oito milhões de quilômetros: Um cotovelo sobre a mesa durante um almoço que rende um bom papo, uma professora que leva um pênis para o jardim de infância e confunde sexo com educação sexual ou uma exposição artística promovida por alunos que clamam que o cu é lindo.
Uma outra versão do mito relata que, quando Pandora viu o que havia feito, fechou a caixa e deixou apenas uma coisa dentro, escutou uma voz chamando-a da caixa, suplicando que fosse solta e, convicta de que nada que estivesse dentro dela poderia ser pior do que os horrores já libertados, a abriu mais uma vez.
Infelizmente, na adaptação à vida real brasileira, não houve culpa ou sequer percepção do horror que foi promovido no ato de abertura da caixa. Quando o brasileiro que teve a sua estupidez suprimida viu os valores terríveis que alimentava em seu íntimo novamente libertos, comemorou e fez um juramento tácito, a si próprio, de que fecharia os olhos para todo mal e faria de tudo para defendê-lo.
Agora que a caixa de Pandora dos sujeitos que foram obrigados a sufocar os seus preconceitos foi aberta, resta-nos aguardar o futuro e torcer para que, desta vez, tenha restado alguma espécie de esperança dentro dela.
* Advogado e escritor. Ativo na cena literária baiana, publicou sete livros, o mais recente " O último a sair, por favor, apague a luz e me deixe aqui." Instagram: @_matheuspeleteiro
Foto de capa: Pandora, de 1908, Thomas Benjamin Kennington. Visualizado em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/78/Kensington_Pandora.jpg>
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