A ARTE DO MARCA-PASSO (UMA SEGUNDA OPORTUNIDADE DE VIVER)
- Everton Nery
- 3 de set.
- 4 min de leitura

A vida, por vezes, pulsa em compassos frágeis, exigindo de nós não apenas sobrevivência, mas também criação. O marca-passo, nesse sentido, não é apenas um artefato médico: é metáfora e arte, instrumento que devolve ao corpo a música interrompida, devolve à mente o poema esquecido, devolve ao espírito a encenação perdida. Eu mesmo, Everton Nery, em um de meus livros, afirmo que somos os poetas de nossa própria existência, ou seja, os artistas da própria vida. E é nessa condição, de artista e poeta, que compreendo minha travessia: transformar a dor em narrativa, o compasso mecânico em dança, e a fragilidade humana em poesia de resistência.
Desta forma, entendendo a arte como trabalho invisível que sustenta o teto da nossa alma, percebemos que ela não fabrica parafusos, mas ajusta constelações interiores; não mede o mundo, mas nos dá a medida de estar no mundo. Quando tudo ao redor exige utilidade imediata, ela insiste em outra aritmética: a do espanto, da ternura, do dissenso, da escuta. Não é fuga, é fundamento. É o lugar onde a vida se ensaia para poder existir de verdade.
A ciência sabe e entende disso. Albert Einstein lembrava que “a imaginação é mais importante do que o conhecimento”, não para rebaixar o saber, mas para dizer que o conhecimento precisa de asas antes de precisar de réguas. Oliver Sacks, neurologista que escutava cérebros como quem ouve sinfonias, dizia que a música pode nos arrancar da depressão, fazer-nos chorar e, em certo sentido, nos salvar. Antonio Damasio mostrou que razão e emoção são irmãs siamesas: sentir é condição para decidir; logo, a criação artística, que organiza afetos, também organiza o pensamento. Semir Zeki chamou a arte de neurociência prática, porque artistas intuem leis do cérebro quando escolhem formas, cores e ritmos que nos comovem. E Giacomo Rizzolatti, ao estudar os neurônios-espelho, ajudou a explicar por que um gesto num palco pode abalar um corpo na plateia: criamos dentro de nós, por empatia, a dor que ouvimos, o riso que lemos, o cheiro que sentimos, a dança que vemos, pois parafraseando Nietzsche, aqueles que eram vistos dançando, foram ridicularizados por aqueles que não eram capazes de ouvir a música.
É por isso que um poema pode ser mais preciso que um relatório sobre aquilo que conta; que um quadro pode descrever melhor uma época do que uma planilha; que um solo de percussão, feito de pausas, carne e choque, conserta o que a teoria não alcança. Não há charlatanismo na coragem de se expor. Há risco. Há trabalho. Há método, mesmo quando o método é reaprender a respirar. Quem sobe ao palco, abre caderno, ergue câmera ou pincel aceita ser contestado para dar ao outro algo que não existia antes: um mundo possível.
A arte não vive de desprezo ao real; ela o enfrenta por outras vias. Daniel Levitin, que mapeou a música no cérebro, mostra que ritmo e melodia reforçam memória, atenção, coordenação; é biologia posta a serviço do sentido. A escultura da linguagem que a literatura pratica não é “perfume do nada”: é musculatura de pensamento crítico. A coreografia de corpos que performam na rua não é “folga estética”: é urbanismo simbólico que redesenha lugares de fala. E a fotografia em preto e branco, que tantos acusam de melancolia, devolve contraste ao que a pressa homogeneizou.
Arte incomoda. E ainda bem. Richard Feynman dizia que a ciência não rouba a beleza das coisas, “só a acrescenta”. A arte faz o mesmo com o humano: não nos “desmascara” para humilhar; desvela para libertar. Quando um espetáculo perturba, talvez não seja vaidade: seja cirurgia. Quando uma instalação provoca, talvez não seja capricho: seja diagnóstico. É o trabalho de tornar visível o que doía escondido. E há ética nisso: deslocar o olhar é uma forma de cuidar.
Sim, há quem transforme aplauso em culto de si. Mas a vaidade não é monopólio de artistas; é vício de gente. A diferença é que a arte, quando verdadeira, converte o espelho em janela. E o público, longe de “plebe a ser domada”, é a razão de ser do acontecimento: a obra só existe inteira quando bate no outro. A plateia não é massa; é diálogo. A vaia, às vezes, é o começo de uma conversa séria; o bocejo, um pedido por outra linguagem; o silêncio, consentimento ou reverência. E o artista, se é grande, escuta.
Falem de “utilidade”: pensemos em prevenção à barbárie. Onde há arte, a crueldade encontra um obstáculo de carne e som. Onde há orquestra num bairro, o tempo ganha outra densidade. Onde há slam na praça, a língua materna vira ferramenta de cidadania. Onde há teatro na escola, a criança aprende a ser o outro sem deixar de ser ela. Essa “economia do inútil” costuma salvar vidas, não apenas porque acalma, mas porque ensina a discernir, a questionar, a imaginar saídas. Democracias respiram por essa “traqueia”. Chama-se trabalho o que demanda método, disciplina, repetição, estudo, fracasso e recomeço. É exatamente isso que compõe a oficina do artista. Dias de ensaio que ninguém vê, noites de reescrita, técnicas que doem no corpo, pesquisa que não cabe em bibliografia. Há suor por trás do improviso, há planejamento por trás do acidente feliz. E quando o acaso aparece em cena, é porque foi convidado com rigor.
A arte tem cheiro de rua e gosto de laboratório. É ponte entre a sensibilidade e o cálculo. Pode morar num tamborim, num algoritmo, num bordado, num filme caseiro, num grafite de esquina. E, quando aperta a catraca da realidade, a arte empurra: abre brechas para que a vida volte a circular. Não é ornamento, é infraestrutura do espírito! Se é para erguer critérios, ergamos os que respeitam a complexidade. Que se critique com argumentos, não com escárnio. Que se discorde com propostas, não com banimentos. Porque o mundo sem artistas não é um mundo mais moral; é apenas um cenário menor, mais raso, mais mudo, mais sem qualquer cheiro. O humano que há em nós pede técnica e ternura; pede ciência e canção; pede prova e poema.
No fim, após a conta fechada e o expediente encerrado, é sempre a arte que recolhe os estilhaços do dia e nos devolve inteiros. E quando a vida falha no compasso, é ela quem marca o tempo de novo, como um marca-passo invisível, discreto e fiel. A arte não nos transforma em deuses; ajuda-nos, simplesmente, a permanecer humanos. E isso, convenhamos, já é milagroso o bastante.
Um grande Xêro no coração!
Eu muito me emociono que texto forte e lindo. O mundo precisa ler❤️ Tenho muita sorte em tê-lo como meu professor.
Parabéns, professor Everton!Só a arte é capaz de transformação profunda. Nesse sentido, inovação, ciência e tecnologia sempre vão se submeter á Literatura e a Filosofia.
Everton, seu texto é de uma profundidade rara: transforma o marca-passo em metáfora de vida e a arte em sustento invisível da existência. Você mostra que a arte devolve compasso, sentido e humanidade. Concordo plenamente, mas penso que, além disso, é também necessário aprendermos a viver as próprias emoções, a sentir os ritmos que a vida nos impõe, a ajustar nossos passos aos compassos internos e externos. Afinal, como lembra Viktor Frankl, em Em busca de sentido, a vida nos chama não apenas a criar, mas também a responder com atitude ao inevitável, inclusive à dor.
É nesse ponto que sua reflexão ganha ainda mais força: precisamos agradecer as segundas oportunidades que a vida nos concede — e um marca-passo…