top of page

A DOR QUE A LEI AINDA TOLERA: Injúria homofóbica e o caso Fernando Vilaça


ree

Nesta última semana, o país se deparou com a seguinte notícia: Fernando Vilaça da Silva, 17 anos, foi espancado até a morte em Manaus após reagir a uma provocação homofóbica. O caso gerou comoção e mobilização de defensores dos direitos humanos e escancarou, mais uma vez, as fissuras brutais da sociedade brasileira no que diz respeito à homofobia, à juventude LGBTQIAPN+ e à banalização da violência.


Segundo relatos de familiares e testemunhas, Fernando estava indo ao mercado comprar leite quando ouviu um grupo de jovens fazendo comentários de cunho homofóbico. Ao reagir com um simples questionamento, foi espancado com tamanha brutalidade que veio a óbito dias depois, vítima de traumatismo craniano e edema cerebral.


Esse não é apenas um crime. É um espelho. A reação de Fernando à ofensa verbal foi o gesto de alguém que, andava cansado da violência silenciosa e repetida e, por isso, decidiu não mais aceitar o papel de alvo fácil. Foi, também, um ato de afirmação de dignidade. E isso, em um país onde ser LGBTQIAPN+ ainda é tratado como ameaça à ordem heteronormativa e costuma ser punido com ofensas verbais e violência.


A piada homofóbica, a palavra solta, o deboche, o olhar de escárnio são elementos que estruturam um sistema de opressão cotidiana. Quando o STF equiparou a homofobia ao crime de racismo, em 2019, estabeleceu que ofensas dirigidas à orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa não são simples “brincadeiras”, mas sim manifestações de ódio que geram exclusão, sofrimento e, em casos extremos como o de Fernando, morte.


A injúria homofóbica é, portanto, um crime previsto e punido no Brasil. Tipificada no art. 140, §3º do Código Penal, ela representa a violência dirigida à honra subjetiva da vítima, motivada por preconceito. Ao mesmo tempo, revela o desprezo institucional que ainda persiste: a falta de políticas públicas efetivas, a ausência de educação em direitos humanos nas escolas, e a morosidade das investigações, que deixam mães, pais e comunidades inteiras à mercê da impunidade.


O que torna o caso de Fernando ainda mais perturbador é a sua previsibilidade. A morte não veio de forma repentina, mas como resultado de uma lógica que se repete em cada cidade brasileira: jovens LGBTQIAPN+ insultados, ameaçados, expulsos de casa, assassinados. E tudo isso amparado por uma permissividade social, pela omissão das instituições e por um discurso político que, muitas vezes, legitima o ódio como forma de “defesa da moral”.


Em um cenário assim, a falta de reação do Estado é cumplicidade. Quando o poder público não investe em políticas de proteção, quando a escola não aborda a diversidade de forma afirmativa, quando a polícia negligencia denúncias de agressão por motivação sexual, cria-se o ambiente perfeito para a repetição da tragédia.


Fernando tinha o direito de viver. Tinha o direito de ir ao mercado e voltar para casa. Tinha o direito de existir com seus gestos, suas roupas, sua voz. E sua morte não pode ser apenas mais uma estatística. Ela precisa se tornar símbolo de uma luta mais ampla por reconhecimento, por proteção, por justiça.


Mais do que isso, é preciso transformar essa dor em ação. É necessário fortalecer redes de acolhimento para jovens LGBTQIAPN+, garantir presença de debates sobre diversidade nas escolas, exigir do Judiciário celeridade nos casos de violência motivada por preconceito e pressionar o Estado a assumir sua responsabilidade.


Fernando Vilaça é o nome de uma vida interrompida. Mas também pode ser o nome de um ponto de virada. Que o grito de sua família, a indignação nas redes sociais e a solidariedade das ruas não se dissolvam com o tempo. Que seu nome permaneça como memória viva de uma juventude que resiste e que exige, mais do que nunca, viver — com liberdade, respeito e dignidade.

 

O que é injúria homofóbica e por que ela importa?


O ponto de partida para o assassinato de Fernando Vilaça foi uma ofensa verbal, proferida de forma provocativa por outros adolescentes. Essa palavra, repetida cotidianamente em ambientes escolares, domésticos e públicos, é frequentemente tratada como “brincadeira” ou “liberdade de expressão”. No entanto, juridicamente, ela pode configurar o crime de injúria qualificada por preconceito, quando dirigida à orientação sexual real ou presumida da vítima.


A injúria homofóbica é a forma mais comum de violência contra pessoas LGBTQIAPN+, e consiste em ofender a dignidade ou o decoro de alguém com base em preconceito. Embora a Constituição Federal proíba toda forma de discriminação (art. 5º, XLI), foi só em 2019 que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADO 26, reconheceu que a homofobia e a transfobia devem ser tratadas como crimes de racismo, até que o Congresso edite legislação específica. Essa decisão equiparou a gravidade dessas condutas àquelas previstas na Lei nº 7.716/1989.


No campo penal, a injúria homofóbica se encaixa no artigo 140, §3º, do Código Penal, que prevê pena de um a três anos de reclusão e multa para ofensas motivadas por elementos como raça, cor, etnia, religião ou origem — incluindo, por decisão do STF, identidade de gênero e orientação sexual.


Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de censura ao discurso, mas de proteção à dignidade. A injúria homofóbica não se refere a uma mera discordância ou crítica a condutas, mas sim à utilização de linguagem agressiva, pejorativa ou desumanizante, com o objetivo de inferiorizar a pessoa LGBTQIA+.


No caso de Fernando, o insulto foi o estopim. Mas como apontam especialistas em criminologia e direitos humanos, esse tipo de ofensa não é "inofensivo" — é o primeiro degrau de uma escada de violência que pode culminar em agressões físicas e homicídios, como de fato ocorreu. Por isso, o combate à injúria homofóbica é um instrumento essencial de prevenção penal e de sinalização social: o Estado precisa dizer claramente que essa linguagem fere, exclui e, sim, mata.


A maioria das vítimas de injúria homofóbica não denuncia. Seja por medo de retaliação, seja por desconfiança no sistema de justiça, a subnotificação é alarmante. Quando o Estado não reconhece formalmente essas violências como crimes, ele naturaliza o preconceito e deixa espaço para que ele cresça, como uma erva daninha que sufoca qualquer possibilidade de convivência respeitosa.


Nos casos em que há agressão física subsequente à injúria, como com Fernando, o reconhecimento do caráter preconceituoso da ofensa inicial pode reforçar a configuração de homicídio qualificado, tornando o julgamento mais fiel à realidade dos fatos. O desafio é fazer com que as instituições estejam capacitadas para enxergar essa relação e não tratem tais casos como meras “brigas de jovens”.


Em entrevista ao portal G1, o advogado da família de Fernando pontuou que Fernando não era gay, mas ainda assim sofria com ofensas e provocações. Vale ressaltar, portanto, que o crime de injúria homofóbica não exige que a vítima pertença de fato ao grupo protegido. Basta que o agressor utilize expressões ofensivas relacionadas a esse grupo com intuito de ofender, ainda que a vítima seja heterossexual.


O STF, ao equiparar a homofobia ao racismo (ADO 26/DF), deixou claro que o foco é na conduta do agressor e na motivação discriminatória, não na orientação real da vítima. Tribunais brasileiros já reconheceram a injúria homofóbica em casos nos quais a vítima era heterossexual, mas foi atacada com termos ofensivos relacionados à homossexualidade. A jurisprudência entende que o conteúdo discriminatório da ofensa atinge diretamente o grupo LGBTQIAPN+ como um todo, reforçando o estigma e, portanto, deve ser punido.


Fernando não morreu apenas por reagir. Ele morreu por romper o pacto de silêncio imposto a tantos jovens LGBTQIAPN+. Ao perguntar por que estava sendo chamado de “viado”, ele fez o que todo cidadão tem o direito de fazer: exigir respeito. E por isso foi punido com a morte.


Esse caso nos obriga a perguntar: o que estamos fazendo para que essa juventude tenha o direito de existir sem medo? O que estamos ensinando nas escolas, nos lares, nas igrejas, nas instituições? E, mais importante: que resposta jurídica e política daremos para evitar o próximo assassinato?


REFERÊNCIAS:


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13 jul. 2025.

 

BRASIL. DecretoLei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 13 jul. 2025.

 

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jan. 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em: 13 jul. 2025.

 

BRASIL. Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Altera os artigos 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e o § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 maio 1997.

 

G1. O que se sabe sobre morte de adolescente espancado após reagir a piada homofóbica em Manaus. G1 Amazonas, 10 jul. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2025/07/10/o-que-se-sabe-sobre-morte-de-adolescente-espancado-apos-reagir-a-piada-homofobica-em-manaus.ghtml. Acesso em: 10 jul. 2025.

 

G1. Entenda o caso de injúria homofóbica que terminou com espancamento e morte de adolescente em Manaus. G1 Amazonas, 11 jul. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2025/07/11/entenda-o-caso-de-injuria-homofobica-que-terminou-com-espancamento-e-morte-de-adolescente-em-manaus.ghtml. Acesso em: 10 jul. 2025.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO 26/DF. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 13 jun. 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7541161. Acesso em: 10 jul. 2025.


IMAGEM: Portal dos Fatos (Instagram)

 

1 comentário

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
carlosobsbahia
carlosobsbahia
13 de jul.

Não soube desse caso. Absurdo! O indivíduo foi ao mercado e foi assassinado covardemente.

Curtir
SOTEROVISÃO
SOTEROVISÃO

CONHECIMENTO | ENTRETENIMENTO | REFLEXÃO

RECEBA AS NOVIDADES

Faça parte da nossa lista de emails e não perca nenhuma atualização.

             PARCEIROS

SoteroPreta. Portal de Notícias da Bahia sobre temas voltados para a negritude
bottom of page