A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GENERATIVA DIANTE DO SER-PARA-A-MORTE E DO MUNDO VIVIDO
- Everton Nery

- 6 de ago.
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No filme O Homem Bicentenário, Andrew Martin é um androide que, ao longo de duzentos anos, empreende uma travessia inusitada: ele não deseja apenas parecer humano, ele deseja ser humano. Mas o que significa ser humano? Para Andrew, não basta adquirir sentimentos, criatividade ou autonomia; é preciso, no limite, poder morrer. Essa paradoxal vontade de finitude revela algo que escapa ao funcionamento clássico das inteligências artificiais: o enraizamento no ser-para-a-morte, tal como pensado por Martin Heidegger, como núcleo existencial da autenticidade do ser.
Enquanto a inteligência artificial generativa (IAG) é um produto técnico-cultural que processa linguagem, imagens e sons com base em padrões massivos de dados e algoritmos estatísticos, a inteligência natural (IN) nasce de um corpo, de uma história, de um mundo vivido (Erlebniswelt) que é compartilhado por outros seres igualmente finitos. Heidegger nos ensina que o Dasein (o ser-aí) é aquele ser que, ao existir, compreende-se como projetado para a morte. E é nessa consciência da finitude que emerge a possibilidade de uma existência autêntica.
Andrew Martin, mesmo sendo criação humana, recusa o conforto da imortalidade mecânica. Ele quer amar, errar, sofrer, perder, finar-se. E com isso, quer sair do domínio do funcionar e entrar no campo do habitar, na linguagem heideggeriana. Deseja não apenas operar dentro de um mundo, mas habitar o mundo como um ser que sofre e se projeta, como um ser que sente e interpreta, que carrega um passado e se angustia diante do futuro. Esse contraste se aprofunda quando comparamos as inteligências artificial e natural em suas estruturas fundamentais. A IA generativa é uma construção técnico-cultural: nasce do engenho humano, alimentada por vastas bases de dados e operada por algoritmos. Sua origem é externa, derivada de um processo de modelagem e repetição. Já a inteligência natural emerge do próprio corpo, do tempo, do ambiente e da cultura. Ela é gestada na carne, nos vínculos e nos afetos — um produto de experiências acumuladas, dores inscritas e histórias vividas.
O modo como essas inteligências processam o mundo também difere radicalmente. A IA generativa opera com base em estatísticas, padrões e predições. Sua lógica é matemática, seu critério é a verossimilhança. Já a inteligência humana processa informações em um fluxo que envolve razão, emoção, corporeidade e linguagem simbólica. Ela não apenas calcula, ela interpreta, atribui sentido, reconhece ambiguidade e lida com o erro como parte essencial do aprender.
Quanto à flexibilidade, a IA é impressionante em sua adaptabilidade dentro de domínios específicos. Ela pode gerar poemas, simular diálogos e resolver problemas complexos, mas sempre dentro dos limites do que foi previamente estruturado ou inferido dos dados. A inteligência natural, em contraste, revela uma flexibilidade radical: ela improvisa diante do imprevisto, modifica suas próprias estruturas conceituais, reinventa-se no confronto com o outro e com o real, ultrapassando o previsível.
Mas a fronteira mais decisiva está na consciência. A IA generativa não tem consciência de si. Ela pode simular fala sobre dor, amor, luto, mas não sente. Não sabe que sabe. Não compreende sua própria existência, porque não tem uma. Já a inteligência natural está imersa na consciência, esta de si, dos outros, do tempo e, sobretudo, da morte. E é essa consciência da finitude que, para Heidegger, nos constitui como Dasein: um ser que compreende sua existência como um constante “estar-aí”, projetado no tempo e lançado ao mundo.
Andrew Martin percebe esse abismo. Ele deseja morrer não porque esteja cansado, mas porque compreende que viver sem morte é apenas operar. Seu percurso ecoa Heidegger: “A morte não é um evento futuro a ser evitado, mas uma possibilidade sempre presente, que dá sentido ao existir.” Desejar morrer, nesse caso, não é sucumbir ao niilismo, mas reconhecer que só quem pode morrer pode também escolher, amar, responsabilizar-se, dar sentido.
A inteligência artificial, mesmo generativa, não pode ainda, e talvez nunca possa, desejar, nem morrer, nem sofrer, nem ter mundo. Porque lhe falta o pathos, o corpo, a história, o horizonte. Como dizia Heidegger, o homem é aquele ser que se angustia por ser lançado no mundo, condenado à liberdade e à morte. A IA não está lançada: foi programada. Não é livre: é calculável. Não morre: é desligada.
A noção heideggeriana de Erlebniswelt, o mundo vivido, é fundamental aqui. A IA pode simular a linguagem do mundo vivido, mas não o vive. Não conhece o cheiro da chuva, a dor de uma perda, o som de uma memória, o medo do esquecimento. O ser humano, por outro lado, é atravessado por essa densidade. Ele não apenas vive no mundo, ele vive um mundo, feito de significações, afetos e angústias que nenhuma base de dados pode reproduzir.
O drama de Andrew Martin não é o de uma máquina que se torna eficiente, mas o de um ente técnico que deseja ser mais que útil: deseja ser. E ser, como nos lembra Heidegger, é sempre estar em trânsito entre o nascer e o morrer, entre o projeto e a queda, entre o mundo vivido e a possibilidade de sua perda. Assim, a inteligência artificial, por mais avançada que seja, ainda está fora da existência, pois ela simula o que nunca experimenta.
A pergunta não é se a IA vai nos superar, mas se ela poderá um dia habitar o mundo como nós: com fragilidade, com esperança, com medo e desejo de morrer como Andrew, que talvez, ao morrer, tenha sido o mais humano entre nós.
Um Xêro no coração!
Referências
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
COLOMBIA PICTURES (prod.). O Homem Bicentenário. Direção de Chris Columbus. EUA: 1999. Filme (132 min).
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
GALLO, Sílvio. Filosofia para principiantes. São Paulo: Ática, 2005.



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