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A LÍNGUA FRANCA DA VIOLÊNCIA


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Na alvorada cinzenta de 5 de abril de 1794, Georges Jacques Danton cruzava as ruas de Paris em direção ao patíbulo. O estrépito das rodas da charrete sobre o empedrado misturava-se aos murmúrios da multidão aglomerada para assistir ao espetáculo político da morte. Fundador do Tribunal Revolucionário, artífice da primeira onda do Terror, Danton era agora sua vítima — devorado pelo mesmo mecanismo que ajudara a erguer. Seu rosto, altivo mesmo à beira da morte, refletia uma consciência trágica: não a do erro, mas a da ironia. Ao pisar no cadafalso, teria dito: “Mostrai ao povo a minha cabeça — ela vale a pena.” Sua decapitação, promovida por ex-companheiros revolucionários como Robespierre, marca não apenas o fim de uma vida, mas o início de um ciclo de purificação homicida. A Revolução, como um monstro que volta-se contra seus criadores, devorava agora seus próprios filhos.


Este episódio não é uma curiosidade anacrônica, mas um espelho opaco e brutal dos tempos que vivemos. O assassinato de Charlie Kirk, em 10 de setembro de 2025, representa o corolário da inflexão na política norte-americana, onde a radicalização discursiva deixou de ser mero jogo simbólico para converter-se em violência real e irreversível. Assim como na França jacobina, os discursos de pureza ideológica e as retóricas de inimigos internos instauram um clima em que o dissenso vira traição, e a divergência política, um delito punível com a morte.


Nesse sentido, a política contemporânea dos Estados Unidos se encontra em estado de radicalização avançada, em que o assassinato político retorna como sintoma e catalisador de uma crise profunda na cultura democrática que sobretudo, representa uma crise na linguagem. Segundo John Pocock, a linguagem política não é um simples meio de expressão de vontades, mas um conjunto de vocabulários estruturados historicamente, que delimitam o que pode ser dito e pensado politicamente em determinado tempo e lugar. Ou seja, cada regime político opera dentro de um campo semântico que organiza os sentidos possíveis do poder, da autoridade, do direito, da cidadania, do inimigo.


Quando essa linguagem é capturada por vocabulários de guerra, exclusão e purificação, o campo do discurso se estreita — e o campo semântico da violência se expande. A radicalização não é, portanto, apenas um fenômeno emocional ou moral: ela é, antes, uma transformação profunda do ideário politico, que  passa a operar com léxicos da destruição. Essa mutação se expressa com nitidez nas redes sociais contemporâneas, onde metáforas bélicas, retóricas de traição e inimigos internos dominam a gramática do engajamento político. Hannah Arendt, em sua obra Da violência, distingue com precisão entre poder e violência: o poder nasce da ação conjunta e do reconhecimento mútuo entre sujeitos livres, enquanto a violência aparece onde o poder fracassa. Quando a linguagem política se desfigura, deixando de ser uma tecnologia de significação para se tornar uma arma, ela contribui diretamente para o esvaziamento do poder e a instalação da violência. Arendt e Pocock, embora por caminhos distintos, convergem ao sugerir que a degradação da linguagem é o primeiro sinal de colapso do mundo comum.


No Brasil, esse fenômeno manifestou-se de forma concreta em 2022, com casos emblemáticos que revelam como a linguagem política transfigurada em discurso de ódio redundou em assassinatos. Moïse Mugenyi Kabagambe, imigrante congolês, foi espancado até a morte após ser verbalmente atacado por sua nacionalidade e cor da pele. Genivaldo de Jesus Santos, homem negro com transtorno mental, morreu asfixiado no porta-malas de uma viatura da PRF, enquanto era desumanizado e ofendido por agentes públicos. Em paralelo, foram registradas mais de 74 mil denúncias de crimes de ódio motivados por identidade ou orientação sexual, gênero, etnia, nacionalidade ou religião. A morte, nesses contextos, não é um acidente: é o desfecho lógico de uma narrativa em que o verbo cede à lâmina. E que não nos esqueçamos do Mestre Moa do Katendê.


Nos Estados Unidos, o assassinato de Kirk emerge de cenário semelhante: uma nova geração de discursos digitais — muitas vezes travestidos de liberdade de expressão — constrói um universo simbólico onde eliminar o oponente se torna sinônimo de purificar a política. O algoz de Kirk, um jovem radicalizado em fóruns extremistas, deixou claras as motivações ideológicas em suas publicações anteriores ao crime. A morte de um líder político torna-se performance, sacrifício, símbolo. E o público, nesse teatro trágico, não é apenas espectador: é cúmplice passivo ou ativo, moldado por um léxico que transforma palavras em projéteis.


Tanto Arendt quanto Popock alertam que a destruição da linguagem precede a destruição da política. O assassinato de Kirk, assim como os casos de violência no Brasil, devem ser compreendidos não apenas como tragédias, mas como sintomas de uma profunda regressão semântica da cultura

política contemporânea.


Restaurar a linguagem como campo de disputa simbólica — e não de extermínio — é tarefa urgente. Restaurar a pluralidade de vocabulários democráticos, resgatar o valor do dissenso e proteger o mundo comum são imperativos ético-políticos. Afinal, como nos lembra Arendt, onde a violência triunfa, o poder já morreu. Por isso, mais do que diagnosticar o presente, é urgente recuperar os fundamentos que podem restaurar a prática política como espaço de convivência e criação.


Restaurar a política é, portanto, restaurar a promessa. Enfrentar a radicalização não significa extinguir o conflito, mas reinscrevê-lo no campo do discurso, onde o dissenso pode gerar novidade e não destruição. Arendt nos lembra que a condição humana é marcada pelo início, pela natalidade — a capacidade de começar algo novo. Contra o fechamento violento da história, resta-nos reabrir a possibilidade do início: e isso só se faz pela linguagem, pela política, pela promessa.



Referências:

 

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Organização e introdução de Jerome Kohn. Trad. Rosaura Eichenberg. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

 

ARENDT, Hannah. Da violência. Trad. André Duarte. São Paulo: Unesp, 2013.REUTERS. Justiça decreta prisão de acusados do assassinato de Moïse Kabagambe. 02 fev. 2022. Disponível em: https://www.reuters.com/article/moise-kabagambe-prisao-idBRKBN2K70YT. Acesso em: 16 set. 2025.

 

BBC NEWS BRASIL. Homem negro morre em abordagem da PRF em Sergipe: o que se sabe sobre a morte de Genivaldo. Maio de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61579940. Acesso em: 16 set. 2025.

 

POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. Trad. R. G. Santos. São Paulo: Unesp, 2019.

 

SAFERNET BRASIL. Incitação à violência contra a vida lidera violações de direitos humanos com mais de 76 mil casos em cinco anos. 2022. Disponível em: https://new.safernet.org.br/content/incitacao-violencia-contra-vida-lidera-violacoes-de-direitos-humanos. Acesso em: 16 set. 2025.


Referência para a imagem: JUSTICE REVIVAL. Let’s Be Honest, America: Human Rights Are Still On the Line [fotografia]. 2020. Disponível em: https://justicerevival.org/lets-be-honest-america-human-rights-are-still-on-the-line/. Acesso em: 16 set. 2025.

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