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A OPACIDADE DO SUJEITO E DA LINGUAGEM NA ERA ALGORÍTMICA


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A sociedade contemporânea é marcada por uma crescente confiança na tecnologia e nos algoritmos como mediadores de sentido, decisão e conhecimento. Contudo, essa crença na neutralidade e transparência das linguagens computacionais contrasta com uma tradição filosófica e linguística que vê a linguagem como lugar de opacidade, disputa e incerteza.


Entre as autoras que mais contribuíram para essa reflexão, destaca-se Eni Pulcinelli Orlandi, cujos estudos em Análise de Discurso demonstram que a linguagem é sempre atravessada pela história e pela ideologia. Para Orlandi (1999), nem o sujeito, nem a língua, nem a história são transparentes; todos estão imersos em processos simbólicos e políticos que escapam ao controle da consciência.


Dessa maneira, ao aproximar a teoria discursiva da reflexão sobre a linguagem algorítmica, busca-se compreender em que medida os sistemas de Inteligência Artificial também se inscrevem na mesma condição de opacidade que caracteriza a experiência humana e linguística. E, a partir dessa constatação, sustenta-se que é justamente essa incompletude que torna possível a educação como prática transformadora.


A opacidade, em Orlandi, não significa ausência de sentido, mas sua multiplicidade e indeterminação. A autora rompe com a visão estruturalista da linguagem como sistema fechado e autossuficiente, afirmando que o discurso é um acontecimento histórico em que o sujeito se constitui e se desloca. Ou seja, a linguagem não é instrumento de comunicação, mas condição de produção de sentidos e de sujeitos. Nela, o dizer é sempre efeito de uma posição na história e na ideologia. (Orlandi, 1999)

O sujeito discursivo é, portanto, um efeito da linguagem, e não seu criador soberano. Ele é constituído pela história, mas também a transforma. Há, nesse processo, um jogo permanente entre o dizer e o não dizer, entre o dito e o silenciado, sendo o que Orlandi denomina de formas do silêncio (2007).


Essa opacidade da linguagem é, ao mesmo tempo, limite e potência: impede a transparência total, mas abre o campo do possível, da interpretação, do novo. É no intervalo entre o que se diz e o que se cala que a educação, a arte e a crítica se fazem possíveis. Seguindo este entendimento, com o avanço das tecnologias digitais, surge uma nova forma de linguagem, a linguagem algorítmica, construída com base na lógica matemática e na computação simbólica. À primeira vista, essa linguagem parece objetiva e neutra, capaz de eliminar ambiguidades e subjetividades. No entanto, essa suposta clareza é ilusória.


Os algoritmos são discursos produzidos por sujeitos e, como tais, carregam as marcas da ideologia, dos valores e das relações de poder que os originam. Mesmo quando traduzidos em números, pesos e variáveis, os algoritmos significam, e todo significar é, por definição, opaco. Assim, temos que a análise discursiva permite compreender a linguagem algorítmica não como algo exterior ao humano, mas como uma nova materialidade discursiva, atravessada pela mesma historicidade que caracteriza as demais linguagens. Assim, a “inteligência” das máquinas é também uma construção simbólica, não uma essência autônoma. Sobre esta complexidade, entendemos junto a Orlandi (2007) que a ideologia não é um revestimento do discurso, mas a própria forma como o discurso se produz. Portanto, os algoritmos não escapam da opacidade: eles a reproduzem. A diferença é que, enquanto o sujeito humano reconhece (ou pode reconhecer) sua incompletude, os sistemas algorítmicos tendem a ocultá-la sob a aparência da precisão.


Ao reconhecer a linguagem como opaca e o sujeito como inacabado, a educação torna-se espaço de travessia, e não de dominação. Nesse sentido, o diálogo entre Orlandi e Paulo Freire é fecundo: ambos compreendem o saber como processo histórico e dialógico, e o sujeito como ser em constante formação. Para Freire (1996, p. 55), o ser humano é “um ser inacabado, consciente de seu inacabamento”, e é precisamente essa consciência que funda a possibilidade da educação libertadora. Do mesmo modo, em Orlandi, a língua é o lugar do equívoco, da falta e do movimento, logo, ensinar e aprender são gestos interpretativos diante da opacidade.


A linguagem algorítmica, nesse contexto, não ameaça a educação, mas pode ampliá-la, desde que seja compreendida como linguagem humana, e não como substituta do humano. É nas brechas de sua opacidade, nos erros de interpretação, nas ambiguidades, nas respostas imprecisas, que se abre espaço para o pensamento crítico, para a ética da diferença e para a formação de sujeitos reflexivos. A opacidade do sujeito, da língua e da história, conforme pensa Eni Orlandi, desvela a impossibilidade de totalização do sentido. Essa impossibilidade, longe de ser um fracasso, é a própria condição da existência humana e da produção do saber.


Na era da linguagem algorítmica, reconhecer a opacidade é um ato político e pedagógico: é recusar a ilusão da transparência técnica e afirmar a centralidade da interpretação, da crítica e da abertura ao outro. A educação, por sua vez, é o lugar onde essa opacidade se transforma em potência, onde o inacabamento do humano e da linguagem se faz trabalho de criação, diálogo e esperança. Assim, compreender a linguagem como opaca é também compreender que a educação é sempre uma aposta no ainda não dito.


Referências:


FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.


ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. Campinas: Cortez, 1999.


ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.


ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2015.


IMAGEM: Linkedin

25 comentários

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Keven
06 de nov.
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O diálogo entre Orlandi e Paulo Freire reforça a educação como um processo inacabado, crítico e libertador, fundado na interpretação e na abertura ao outro.

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luisa luz
06 de nov.
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Os algoritmos são apresentados como discursos humanos, e não entidades neutras, reproduzindo valores e visões de mundo de quem os produz.

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Sandra
06 de nov.
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 A opacidade não é vista como falha, mas como potência criadora, abrindo espaço para novas interpretações e significados.

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Rebeca Cavalcanti
06 de nov.
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Baseando-se em Orlandi, o autor mostra que toda linguagem — inclusive a algorítmica — carrega marcas de poder, ideologia e contexto.

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Victória Ferreira
06 de nov.
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 O texto reflete sobre como a crença na neutralidade dos algoritmos contrasta com a ideia de linguagem como algo histórico, ideológico e opaco.

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