Com a pandemia do coronavírus o mundo mudou seu ritmo de uma forma impressionante, como você mesmo deve ter sentido na sua própria rotina. Tudo aquilo que parecia inalterável, sólido, consistente, perdeu sua solidez de fundo, deixando passar uma mistura estranha de dúvida e medo, além de um cheiro insurpotável de caos que escorre por baixo de nossas instituições. No universo cinematográfico a pandemia também comprometeu fronteiras, além de ter derrubado as expectativas de todos lá fora, o que inclui não apenas os espectadores, como eu e você, mas toda uma cadeia produtiva que atravessa a indústria do cinema em geral, como diretores, camareiros, atores, distribuidores, editores, e muitos e muitos outros elementos dessa fábrica de sonhos inaugurada pelos irmãos Lumière.
Com cinemas esvaziados, muitos filmes mergulharam nas plataformas de streaming, como Netflix, Disney +, HBO Max, e tantas outras espalhadas pelos quatro cantos do mundo digital. Diante dessa mudança aparentemente simples, e inofensiva, uma pergunta brota do horizonte, quase como uma semente de alguma planta indesejada: Essa mudança de cenário, e de plataformas de visualização, prejudica nosso contato com as obras? Minha resposta nesse pequeno ensaio é um triste SIM, especialmente quando consideramos filmes projetados dentro dos moldes do cinema, mas que graças à pandemia invadiram as telas de celulares, notebooks ou televisões. Essa mudança inesperada implodiu nossa percepção cinematográfica, nosso modo de encarar aqueles frames em movimento que chamamos de cenas. Tudo isso afetou os dois alicerces básicos, eu diria até estruturais, de qualquer filme, série ou show: o Som e a Imagem. Esses dois elementos, quando bem costurados, criam um verdadeiro cenário experiencial, uma outra forma de vivenciar as coisas ao redor. Na verdade, quando esses dois elementos combinam suas forças, entrando num ritmo de dança perfeito, esquecemos até de quem somos, ou do espaço em que estamos. Sujeito e objeto perdem suas fronteiras clássicas, dissolvendo seus contornos um no outro, quase como dois rios que desaguam no mesmo lugar. O cinema, ao menos durante os 80, 90 ou 100 minutos que permanecemos lá em nossa poltrona, comendo nossa pipoca engordurada, deixa de ser um simples feixe luminoso projetado em um ecrã, assim como eu deixo de ser um simples espectador passivo e distante. Naquela breve fagulha de tempo, naqueles minutos dispersos do meu dia, meu Ego descentra a si mesmo, da mesma forma que dissolve suas fronteiras nos limites do próprio filme, sendo nada mais do que uma extensão do ambiente ao meu redor.
O cinema, ao menos durante os 80, 90 ou 100 minutos que permanecemos lá em nossa poltrona, comendo nossa pipoca engordurada, deixa de ser um simples feixe luminoso projetado em um ecrã, assim como eu deixo de ser um simples espectador passivo e distante.
Ao serem assistidos em telas de celular, notebook ou tablet, a experiência cinematográfica é comprometida, já que eu não estou mais no filme, nas fronteiras do seu mundo estabelecido. Ao contrário, o filme é que está na minha casa, em um cenário comum, cotidiano, nada mais do que um objeto como outro qualquer. Ao invés de um deslocamento do sujeito até o cinema, demandando uma adaptação por parte do espectador, é o cinema agora que invade nossas casas, tendo ele que se adaptar à nossa rotina. As trilhas sonoras, quase sempre marcadas por vários níveis de originalidade, como aquelas de John Williams em Star Wars, acabam tendo que dividir espaço com o ruído da geladeira, a tosse do vizinho, o choro das crianças do andar de baixo, além de muitos outros detalhes. A fotografia de um filme, como aquela scorcesiana presente em Coringa (2019), da mesma forma precisa dividir espaço com uma sala de estar mal iluminada, uma TV de poucas polegadas e de baixissima resolução, assim como solta no centro da sala, às vezes muito acima ou muito abaixo do esperado. Em outras palavras, uma experiência que deveria ser de pura imersão, um mergulho de cabeça em um reino onde a linguagem pode ir além de si mesma, como acontece com o próprio cinema, se transforma, por outro lado, em um elemento secundário dissolvido em uma rotina qualquer, quase como se o filme fosse apenas um programa de TV, em que assisto no conforto do meu sofá enquanto mastigo meu último pedaço de carne do almoço.
Uma experiência que deveria ser de pura imersão, um mergulho de cabeça em um reino onde a linguagem pode ir além de si mesma, como acontece com o próprio cinema, se transforma, por outro lado, em um elemento secundário dissolvido em uma rotina qualquer
O filme não deveria se adaptar a nós, ou a nossa rotina, mas ao contrário. Nós que precisamos investir dinheiro e energia, nós que precisamos deslocar nosso corpo em busca de algo diferente, de uma experiência única com a linguagem que nos cerca. Esse deveria ser um momento raro, pontual, em que finalmente poderíamos escapar da sufocante chatice e linearidade do cotidiano. Seria a nossa chance rara de ouvir narrativas novas, diferentes, criativas, indo assim muito além do PF que recebemos nas redes sociais, como Facebook e Instagram. Infelizmente, o cinema caiu na nossa rotina gastronômica, em nossa rotina chata, circular e sem qualquer traço de criatividade. Repito... não é o cinema que deveria se adaptar a nós, mas nós ao cinema.
Seria a nossa chance rara de ouvir narrativas novas, diferentes, criativas, indo assim muito além do PF que recebemos nas redes sociais, como no Facebook e Instagram.
Esse cenário inédito de pandemia, como tentei sugerir ao longo desse ensaio, mexeu bastante com cada fibra do nosso corpo, afetando aquilo que podemos chamar de experiência cinematográfica. É possível perceber bem os efeitos de tudo isso com os filmes recém lançados Mulher Maravilha (DC) ou Soul (Pixar). Ambos os filmes não foram produzidos incialmente como produtos de plataformas de streaming. O primeiro por conta da sua fotografia épica, com grandes cenários e grandes batalhas, enquanto o segundo por conta de sua animação detalhada, chegando ao ponto de um realismo surpreendente, como é típico da Pixar. Ambos também trouxeram grandes trilhas sonoras, elementos que se combinaram para criar o oceano de afecções que chamamos de filme. Isso significa que o suporte de exibição afeta o conteúdo da obra, da mesma maneira que o modo como a encaro e a avalio. Ou seja, assistir Luzes da Ribalta em um cinema não é o mesmo que assistir em uma tela de 5 polegadas em um quarto mal iluminado, enquanto com a outra mão seguro um pedaço de pizza que acabei de esquentar no micro-ondas.
Assistir Luzes da Ribalta em um cinema não é o mesmo que assistir em uma tela de 5 polegadas em um quarto mal iluminado, enquanto com a outra mão seguro um pedaço de pizza que acabei de esquentar no micro-ondas.
Talvez esse meu ensaio seja um pouco nostálgico, reflexo de alguém que nunca esqueceu do primeiro momento em que pisou os pés em uma sala de cinema. De qualquer forma, vale aqui algumas reflexões, ainda que temperadas com toques de exagero e pitadas de uma estética teatral. Espero ouvir de vocês suas opiniões a respeito: Os filmes perderam algo durante essa pandemia, ganharam alguma coisa ou nada mudou em nossa experiência cinematográfica? O que vocês acham?
Referência da Imagem:
https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/02/cinema-chines-maior-que-eua-por-que-a-pandemia-pode-acelerar-crescimento.htm
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