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"A PORTA DORMIU ABERTA"




Existem algumas expressões na língua portuguesa que aprendi com minha mãe, tipo: a porta dormiu aberta; a luz dormiu acesa; escuta só pra você ver; e por fim, mas a lista não acaba aqui, não vi nem o cheiro. D. Mira era por excelência a mãe das expressões que diziam muito, desde o pânico total ao medo monumental. A primeira dessas expressões nesta lista é: a porta dormiu aberta. Às vezes a expressão vinha dessa forma categórica e outras vezes na sua forma exclamativa: a porta dormiu aberta! Mas em outras oportunidades a expressão era um misto de exclamação e interrogação: A porta dormiu aberta!?


D. Mira, que está acolhida no colo de Deus, embora ela mesma talvez preferisse que Ele a deixasse um pouco mais por aqui, só pra garantir que a porta não dormisse aberta, era uma especialista na arte da linguagem que educa com afeto e pânico ao mesmo tempo. Havia nela uma espécie de gramática caseira, onde cada expressão era uma convocação à lucidez. E entre tantas obras-primas de sua fala cotidiana, uma se destacava como poema, sentença e profecia doméstica: “a porta dormiu aberta”.


A primeira forma, a categórica, era dita com a solenidade de um boletim de ocorrência cósmico. Não era apenas a porta que dormira aberta. Era o universo inteiro que, naquele gesto de distração, se inclinava ao colapso. “A porta dormiu aberta.” Ponto final. Silêncio. E então você, na dúvida se era caso de rezar, fugir ou correr pra fechar, se via tomado por uma culpa ancestral, herdada de gerações que jamais aprenderam a trancar direito o mundo. A sentença vinha carregada de uma moral implícita: portas não devem dormir, muito menos abertas.

Já na forma exclamativa; “A porta dormiu aberta!”, havia um certo lirismo dramático, digno de uma telenovela das oito (no estilo de dramalhão mexicano). Era como se a porta fosse personagem vivo, um traidor, que decidiu, no auge da noite, entregar a casa ao caos. A exclamação de D. Mira não era mero susto. Era performance. Um teatro de mãe onde o susto é educativo e a porta, coitada, era apenas o bode expiatório da falta de vigilância filial. Era o susto como pedagogia: o grito que ensinava mais que mil conselhos.


Mas era na versão que misturava no tom, a exclamação com a interrogação: “A porta dormiu aberta!?”, que a coisa atingia o seu auge filosófico. Aqui, D. Mira não apenas informava nem somente dramatizava. Ela inquiria. Era uma pergunta, uma acusação, uma prece, um julgamento e, talvez, uma chance de redenção. Essa frase, dita com a sobrancelha arqueada e a mão na cintura, não buscava uma resposta, mas a confissão: quem ousou deixar o limiar do mundo aberto ao desconhecido? Era a hora da verdade. E da bronca. E, como se não bastasse, todas essas variações traziam juntas o subtexto de uma mãe que sabia que sua casa era o centro de um mundo por onde circulavam ventos, espíritos, assaltantes e malfeitores, e que cada porta aberta era uma brecha ontológica no pacto de cuidado.


D. Mira não brincava com palavras, embora fizesse delas um espetáculo. Cada expressão sua era uma espécie de oração ao contrário: não para garantir milagres, mas para evitar catástrofes. Assim, quando ela dizia “a porta dormiu aberta”, não era só uma frase. Era um ritual. Uma sentença. Uma elegia à ordem e à vigilância, temperada com aquele humor que só as mães sabem dosar entre o escândalo e a doçura. Mas quero pedir total licença a minha mainha e (re) significar essa expressão à luz da semiótica e na perspectiva do amor.


Na semiótica de D. Mira, essa filósofa doméstica e guardiã das fronteiras do mundo, a expressão “a porta dormiu aberta” ultrapassa a trivialidade do esquecimento para se inscrever como uma categoria filosófica. Não era apenas sobre a porta. Era sobre o mundo que se esqueceu de vigiar a si mesmo. A porta, nesse dizer materno, é signo, é metáfora, é testemunha silenciosa da nossa distração essencial. Na sua primeira camada, como nos aponta a análise semiótica clássica, trata-se, claro, de uma advertência contra o descuido: “dormir aberta” é o oposto de vigilância. D. Mira não admitia que o sono da porta fosse sinal de liberdade; era, isso sim, o sono da razão, e todos sabemos o que vem daí: monstros, baratas, visitas inesperadas, cuja solução era uma vassoura atrás da porta (rsrsrsrsrs). Na hermenêutica miral, deixar a porta dormir aberta era desafiar as leis da prudência e flertar com a anarquia doméstica. E tudo isso com a refinada ironia de quem, ao apontar o erro, já preparava o café e colocava o chinelo no lugar certo.


Mas eis que, ao olhar mais fundo, sob a perspectiva do amor, a mesma frase se metamorfoseia num hino à confiança. D. Mira, que sempre soube ler o mundo nos seus menores sinais, também sabia que quem ama de verdade, de fato, dorme com a porta aberta, porque sabe que há reciprocidade do cuidado, fidelidade silenciosa e presença mesmo na ausência. Na chave amorosa, a porta que dorme aberta não é vulnerável, é acolhedora. É um gesto de rendição, sim, mas não ao descuido, à entrega.


Na hermenêutica fina da saudade, aquela que D. Mira deixou embutida em cada bronca e cada bolo quente, “a porta dormiu aberta” também pode querer dizer: eu confio, apesar de tudo. Confio que ninguém vai entrar de má-fé. Confio que quem mora aqui ainda sabe voltar. Confio que o amor é mais forte que o medo. Confio, e essa é a ironia maior, mesmo sabendo que, às vezes, a confiança é o maior dos riscos. D. Mira, portanto, não dizia apenas por dizer. Ela construía uma ontologia do cuidado e do afeto com suas expressões. A porta dormiu aberta podia ser o apocalipse doméstico ou a epifania da entrega. Bastava saber escutar e, claro, fechar a porta depois.


Que suas expressões vivam, como senha e herança, no léxico da memória. Afinal, como ela própria poderia dizer, com aquela ironia que só os sábios sabem ter: “Se nem a porta pode dormir em paz, imagina uma mãe.” No fim das contas, talvez o maior ensinamento da sábia D. Mira seja este: quem ama, cuida, mas quem ama de verdade, também sabe deixar a porta aberta, só pra ver se o outro volta. E eu estava sempre, invariavelmente voltando!


IMAGEM: FMX Soluções

4 Comments

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Maria de Fátima Araújo da S.
há 15 horas
Rated 5 out of 5 stars.

A crônica transforma uma frase simples em poderosa lição de vida. Mostra como o amor materno se manifesta em gestos e palavras cotidianas, ensinando com humor, firmeza e afeto.


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Fui arremetida para lembranças
há 4 dias

Fui arremetida para lembranças que eu não mais lembrava. Obrigada querido pelo texto.

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Guest
há 4 dias
Rated 5 out of 5 stars.

👏👏👏👏

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Carlos André
há 4 dias

Nossa mãe foi/é nossa maior escola.

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