A PRISÃO DE VORCARO NOS MOSTRA QUE NÃO APREDEMOS NADA, NEM ESQUECEMOS NADA
- Miguel Pereira Filho

- há 5 minutos
- 4 min de leitura

Nem bem a Europa começava a se recompor do terremoto provocado por Napoleão, o rei Carlos X — com a obstinação ao erro típica dos Bourbons — empenhava-se, a contrapelo, em restaurar privilégios das elites do Ancien Régime, defenestradas pelo ímpeto revolucionário. Foi nesse ambiente que Charles-Maurice de Talleyrand, a maior eminência parda da política europeia, cunhou a célebre frase: “eles nada aprenderam nem esqueceram”. O aforismo descrevia com precisão a atitude temerária da dinastia que, mal tendo sido abalada pelas transformações profundas que culminaram na Queda da Bastilha e, no limite, no Terror, retornava ao poder repetindo exatamente os erros que lhe haviam custado a coroa.
A prisão de Daniel Vorcaro e as revelações sobre suas conexões políticas — que transitam com naturalidade da direita à esquerda — demonstram que a mesma disposição bourbônica parece tomar conta da classe política brasileira. Desde o mensalão, no início dos anos 2000, e de maneira ainda mais evidente no escândalo do petrolão, o país acompanha um processo contínuo em que parcelas expressivas da elite política se revelaram envolvidas em esquemas que articulavam altos burocratas de estatais, grandes grupos empresariais e agentes públicos, numa engrenagem que, mantidas constantes todas as variáveis, serviria para perenizar o grupo político de turno.
Como resposta, a Operação Lava Jato investiu numa espécie de sanha jacobina, lançando-se contra o “sistema”: empresários, diretores de estatais, políticos — ninguém parecia a salvo. Prisões preventivas em série, conduções coercitivas espetaculosas, grampos controversos e estratégias processuais questionáveis culminaram na prisão do então ex-presidente Lula. E, como a verdade sempre encontra uma fresta para retornar, a Vaza Jato apenas explicitou o que já era percebido: parte da operação estava comprometida com um projeto de poder, e não apenas com o combate à corrupção.
Delações premiadas, acordos de leniência e prisões começaram a ser revertidos, deixando um gosto amargo em quem acreditava estar assistindo a uma faxina moral da política. Porém — e este é o ponto estrutural — para além dos valores desviados, o padrão de relação entre público e privado revelado pela operação mostrou algo profundamente brasileiro: um patrimonialismo persistente, adaptado, resiliente, capaz de sobreviver a mudanças institucionais, alternâncias de poder e reformas econômicas.
Raymundo Faoro talvez tenha sido quem melhor descreveu essa lógica ao mostrar como o patronato político, para se perpetuar, deforma a sociedade e a mantém aprisionada em padrões de subordinação. Mesmo que se discutam limites ou excessos interpretativos em Os donos do poder, é inegável que sua descrição do entrelaçamento entre Estado e interesses privados ainda ecoa hoje.
E não se trata de mero vício histórico. Como observa Luiz Carlos Bresser-Pereira, as reformas gerenciais dos anos 1990 — das quais foi protagonista — buscavam justamente delimitar o tamanho do Estado e redefinir seu papel: sair do “Estado empresário” e avançar para um Estado regulador, capaz de disciplinar o mercado sem capturá-lo nem ser capturado por ele. Privatizações, liquidações, reformas administrativas e o desmonte do “entulho desenvolvimentista” pretendiam criar um novo horizonte.
Mas, como demonstra Sérgio Lazzarini em Capitalismo de Laços, ainda que parte do controle empresarial direto tenha saído pela porta das privatizações, ele retornou pela janela dos financiamentos subsidiados, das renúncias fiscais e dos contratos regulatórios. A privatização não destruiu o velho sistema; apenas reconfigurou suas articulações. Da seleção de “campeões nacionais” às teias de relações que vinculavam empresas e Estado, passando por mecanismos de captura regulatória, o patrimonialismo continuou operando — agora com instrumentos mais sofisticados.
É nesse contexto que Vorcaro emerge. Até o momento, o que se sabe aponta para operações financeiras envolvendo o Banco Master, fundos de pensão e relações “heterodoxas” com o Banco Regional de Brasília (BRB). Neste ano, após investigações do Ministério Público, a Justiça barrou a compra do Master pelo BRB, citando indícios de irregularidades e possível crime contra o sistema financeiro. E não se trata apenas de movimentações econômicas: de Ciro Nogueira a Rui Costa, passando por Cláudio Castro e Ibaneis Rocha, Vorcaro mantinha uma rede de contatos políticos impressionante — e imprudente — registrada no próprio celular.
Essa desenvoltura com que Vorcaro transitava por Brasília expõe o ponto nevrálgico: com a derrocada judicial da Lava Jato e com a autonomia orçamentária conquistada pelo Legislativo — garantida pelo fundo eleitoral, pelo fundo partidário e pelas emendas de relator — a classe política passou a ter menos necessidade de capturar estatais para financiar seus interesses. Agora, a intermediação espúria entre público e privado se desloca para contratos, emendas e mecanismos orçamentários opacos. Não é difícil entender por que o Centrão, num gesto de desespero, buscou aprovar a PEC das Prerrogativas: o temor não é o moralismo punitivista, mas a possibilidade de que investigações revelem o novo modo de financiar a política.
Da farsa que sucede à tragédia, percebem-se, com cansado espanto, que — como os Bourbons — seguimos repetindo padrões que nos trouxeram à beira de rupturas. A limpeza institucional prometida pela Lava Jato abriu espaço para aventureiros que cavalgam na antipolítica, e a restauração subsequente, carente de limites e controle, abriu portas para que velhos esquemas retornassem remodelados. A baixíssima densidade do bolsonarismo, enquanto projeto de poder, só evidencia o quanto sua ascensão se deu muito mais pela fortuna malsã que afligia nosso sistema político, do que pela sua capacidade.
Assim, a prisão de Vorcaro não inaugura nada; apenas revela, de forma cristalina, que continuamos numa viagem circular. Mudam-se nomes, siglas, instrumentos — mas a coreografia permanece a mesma. A restauração brasileira parece determinada a provar que ainda temos um longo passado pela frente.
Referências utilizadas
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo: Editora 34, 1998.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2001.
LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: Elsevier, 2011.
IMAGEM: KLEE, Paul. Angelus Novus. 1920. Monotipia colorida. Israel Museum, Jerusalém.



Comentários