A RAIVA PROTETIVA FEMININA
- Karla Fontoura
- 13 de fev.
- 5 min de leitura

Mulher, o que sua raiva fez por você hoje? Esse tipo de pergunta pode ser um tanto intrigante para a sujeita que foi condicionada a interpretar a intensidade dos sentimentos coléricos como um defeito e até um desajuste da sua feminilidade. De fato, uma emoção humana tão comum e, como dito pelos especialistas de saúde mental, tão importante e necessária, pode ser completamente reprimida e negada a um corpo feminino.
A raiva é colocada como um lugar de ocupação do masculino e, mais ainda, uma forma dele demonstrar sua potência, de assumir seu lugar no mundo, afinal, a masculinidade se coloca como um espaço a ser conquistado. O homem só é homem quando se “prova homem” e a raiva pode ser um dos mecanismos mais utilizados para assumir essa identidade. Se a mulher demonstra raiva, ela toma o espaço dele, ou pior, torna-se ele, por isso socialmente interpretamos a menina que demonstra raiva como valentona, masculinizada.
O mais irônico é que, para o corpo feminino, há tantos motivos para sentir raiva que, se fosse levado em conta esse ponto, essa emoção deveria ser um sentimento automaticamente associado à condição da mulher. Eis alguns exemplos:
Raiva por estar sempre no papel de evitar desagradar as pessoas em sua volta e apaziguar os ânimos.
Raiva pelo excesso de atividades, práticas e mentais, como dar conta de três turnos de trabalho e ser o centro das decisões familiares.
Raiva pelas mudanças hormonais do ciclo menstrual, gravidez, puerpério, por exemplo.
Raiva pelo desconforto causada pela pressão estética, como a obrigação de usar um sapato alto no ambiente de trabalho que machuca seu pé o dia inteiro.
Raiva pela falta de espaço e voz nos lugares com predominância masculina.
Raiva por dores físicas prolongadas devido a falta de diagnósticos sobre doenças relacionadas a biologia do corpo feminino, como a endometriose que ainda possui pouca visibilidade e é tardiamente identificada e tratada.
Raiva por não se sentir segura e temer pela sua própria vida em qualquer lugar que vá e haja a presença de homens.
Raiva pela competição feminina em disputa pela atenção masculina.
Mas, em cada um desses lugares difíceis, desconfortáveis, insuportáveis e agonizantes, as mulheres são continuamente alertadas a não se alterarem, a manterem o bom humor e evitarem expressar emoções negativas. Ouvir esse tipo de discurso ao longo de todo uma vida tem o poder de desregular a psique dessa mulher, afinal, “Uma resposta mais raivosa é importante para criar um escudo para agressividade do outro”, como aponta os estudos conduzidos pela psicóloga sul-africana Susan David sobre como sentimentos difíceis podem ampliar a capacidade humana de desenvolver competências para lidar com a realidade.
Um dos principais argumentos para barrar a resposta raivosa em uma mulher é denominar a sua quebra de padrão como um ato violento. Uma mulher continuamente provocada sobre sua aparência no ambiente profissional se enfurece e grita com o colega de trabalho e pede que ele pare com esse comportamento. O lado opositor interrompe as brincadeiras com a acusação de que aquela mulher está sendo agressiva com ele e, logo, disposta a uma atitude violenta. Porém, raiva é uma emoção e violência é um comportamento, como traduz adequadamente a psicóloga Fernanda Angelini e acrescenta: “Não há nada de errado com o que você sente”. Porém, quando a figura masculina invalida o sentimento da colega e a acusa de um comportamento que não procede, ela mesma associa na sua memória diversas outras “vozes” que lhe moldaram a responder com brandura e paciência a qualquer tipo de provocação como o ideal para o ser feminino.
E qual o lugar da raiva na vida de qualquer ser humano? Segundo a psicóloga e sexóloga Letícia Perfeito, a raiva é uma emoção primária, natural e inata, voltada para a sobrevivência e que é acessada quando há uma necessidade de proteção. Com ela, entramos em um ímpeto de luta, o que não significa necessariamente um embate físico. A resposta à raiva pode ser a reclamação, a indignação, a sensação de injustiça ou de que um limite foi ultrapassado. Ela aponta como, ao deixarmos de vilanizar a raiva, entendemos ela como um eco do amor próprio que delimita nossas fronteiras. Letícia deixa claro também que a raiva violenta é aquela acumulada, que não teve espaço para ser expressa e chegou no seu limite.
Diante dessa explanação, podemos imaginar o quão danoso pode ser para uma mulher acumular tantas raivas que são podadas de serem expressas. Muitas delas acabam escapando na maternidade, local onde é autorizada a autoridade feminina. Infelizmente, os silenciamentos impostos no casamento, trabalho e relações de modo geral podem tornar uma mulher uma mãe agressiva, impaciente e imprudente em relação a forma de educar seus filhos. Por vezes, a raiva também desencadeia em doenças psicossomáticas levando a quadros severos de burnout, depressão, ansiedade generalizada ou outros mais. Não à toa, o casamento é um dos locais mais propensos a piorar o quadro de saúde mental de uma mulher, como afirma a pesquisadora Nancy Henry, da Universidade de Utah (EUA):
"Pesquisas anteriores já tinham mostrado que as mulheres são mais sensíveis aos problemas no relacionamento que os homens. A diferença é que agora vemos que esses problemas podem prejudicar a saúde delas".
Diante desse diagnóstico sobre a relação feminina com a raiva, podemos entender como faz parte do lugar de emancipação da mulher ter posse da sua própria raiva, tornando-a uma camada de proteção da sua integridade emocional e até física. A psicóloga Thais Basile, muito sabiamente, argumenta sobre a importância da raiva protetiva. Imersas no patriarcado e suas opressões, as mulheres precisam utilizar desse mecanismo emocional saudável para enfrentar as injustiças e os abusos que inevitavelmente atravessam as suas vidas. Ela aponta como a sociedade está sempre tentando mudar a nossa expressão raivosa e que é preciso se desviar disso e, pelo contrário, incentivar a raiva protetiva.
Para finalizar, trago os apontamentos da escritora e ativista Audre Lorde que, em sua palestra “Os usos da raiva”, realizada na 3ª Conferência Nacional da Associação Nacional de Estudos das Mulheres, em 1981, nos Estados Unidos, aponta como a raiva pode ser canalizada e transformada em resistência e luta na vida de mulheres negras e no ativismo feminista. Ela indica que não há espaço para a comunicação e a transformação social se o medo e a culpa imperam na realidade das mulheres. A autora pontua:
“Não conheço nenhum uso criativo da culpa, a de vocês ou a minha. A culpa é só outra forma de evitar ações bem-informadas, de protelar a necessidade premente de tomar decisões claras, longe da tempestade que se aproxima e que pode tanto alimentar a terra quanto envergar as árvores”.
Diante de tudo isso, eu te pergunto: o que a raiva protetiva pode fazer por você hoje, mulher?
FONTES:
MARIANO, Fernanda AJ. Resenha-" Os usos da raiva: as mulheres reagem ao racismo". Revista Florestan, p. 15-22, 2020.
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