A VACINA PLATÔNICA: Guardiania Judicial e a Perpetuação do Estamento Tutelar no Brasil Contemporâneo
- Miguel Pereira Filho

- 26 de ago.
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A recente entrevista concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes ao Washington Post, em meio às tensões crescentes nas relações Brasil-Estados Unidos, simultaneamente revela e cristaliza uma percepção cada vez mais consolidada acerca da nossa suprema corte: a de que lhe cabe precipuamente a tutela do país. Celebrado como herói pelo establishment norte-americano temporariamente alijado do poder com a ascensão de Trump, Moraes apresentou-se como esfinge desprovida de enigmas.
Diante das críticas formuladas pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello, Moraes sustentou que o Brasil fora infectado pela "doença da autocracia" e que sua missão consistia em "aplicar a vacina". Conjugada na primeira pessoa do singular, tal declaração transcende o voluntarismo de caráter pessoal, configurando-se como metonímia da autoimagem tribunalícia enquanto derradeira salvaguarda da ordem constitucional.
Essa percepção não constitui inovação. Em 2017, durante palestra na UFMG, ainda embriagado pela melodia dos flautistas da Lava Jato, o ministro Luís Roberto Barroso proclamara que competia ao STF, além de sua vocação contramajoritária – consagrada pelo desenho institucional dos founding fathers norte-americanos –, um papel iluminista. Segue o trecho revelador:
"Como se constata, a história às vezes anda devagar. Outras vezes, ela anda rápido. É difícil prever quando será um caso e quando será o outro. Mas não importa. O nosso papel é empurrar a história. Este é o nosso papel como intelectuais, empresários, trabalhadores, como pessoas socialmente engajadas, a serviço da causa da humanidade."
A assertiva, que poderia ter emanado de um leninista, foi proferida por magistrado da mais alta corte constitucional. Importa sublinhar: Moraes e Barroso não constituem meras expressões de incontinência verbal que acomete juízes que, ferindo o pudor e o senso de autocontenção, insistem em ignorar o peso de suas declarações, arrogando-se o direito de não falar exclusivamente pelos autos – atitude apenas rivalizada pelo ministro Gilmar Mendes. Todavia, como nos ensinou Marx, a repetição histórica jamais se apresenta como tragédia, mas invariavelmente como farsa.
A metáfora da "vacina" contra o autoritarismo, empregada por Moraes, não é neutra nem inocente. Em sua cosmovisão, pressupõe uma democracia vulnerável, necessitando proteção por instâncias superiores. Tal perspectiva tutelar foi magistralmente analisada pelo cientista político Robert Dahl sob a rubrica de guardiania. O pressuposto é cristalino: alguns poucos, mais sábios e virtuosos, detêm o dever de proteger a coletividade contra si mesma. Como nos recorda Dahl, o vislumbre de indivíduos aptos ao exercício da razão remonta a Platão e sua aposta nos filósofos-reis – opção sedutora para uma esfera pública dominada por interesses particularistas e demagogos de ocasião. Aparentemente, cabe ao STF, em tempos de fragilidade democrática, consolidar-se como bastião republicano.
Com efeito, subsistem vozes dissonantes. Consoante observou Conrado Mendes, a narrativa heroica que posiciona o Supremo como panaceia para nossos males deve ser contemplada com parcimônia. Em sua intervenção na Feira do Livro de 2025, recordou que "o STF constitui apenas mais um ator, sujeito a vícios e erros" – o que se manifesta, exempli gratia, na prática contumaz das decisões monocráticas.
Do ponto de vista histórico, a tutela judicial pode demonstrar eficácia em momentos emergenciais, funcionando como contenção de forças autoritárias. A perspectiva comparada oferece exemplos análogos: a Corte Constitucional alemã assumindo papel de "democracia militante" pós-1949, ou a Suprema Corte estadunidense durante a era Warren (1953-1969), expandindo direitos civis contra maiorias hostis.
A questão reveste-se de caráter mais contextual que institucional: quando a exceção se normaliza, a judicialização política transmuta-se em guardiania judicial. Se é verdade que o STF tem sido instituição relevante na garantia da ordem institucional, sua hipertrofia fragilizou, ao longo dos últimos anos, a política profissional, consolidando poder contramajoritário excessivamente centralizado. A vitalidade democrática reside na práxis e no engajamento de cidadãos ativos, associações civis organizadas e demais atores políticos institucionais – não em concessões verticalmente impostas. Essa constitui nossa tragédia ao longo de quase toda a história republicana.
E se aquela representa nossa tragédia, a farsa emerge da reiteração desse passado tutelar que, conforme brilhantemente argumenta Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, atravessa nossa (de)formação nacional. Trata-se precisamente do conceito de elites que se instalam no aparelho estatal e ditam os destinos nacionais, impedindo que o poder representativo se efetive. Durante a República, os militares ocuparam esse papel, apresentando-se como "poder moderador" de facto, guardiães da ordem e da pátria. Hodiernamente, não obstante a vigência do regime sob a égide da Carta de 1988, é o STF que se interpõe como estamento burocrático conjuntural. Não mais fardados, porém togados, seus ministros reivindicam a tutela democrática, como se a cidadania fosse incapaz de sustentá-la autonomamente. A continuidade se manifesta: um grupo fechado, situado no Estado, reproduz-se e legitima-se como intérprete exclusivo da Nação. Aqueles que testemunham militares e juízes nas escaramuças durante o julgamento da trama golpista não podem se iludir: trata-se da consumação de uma circulação de elites guardiãs no interior do aparelho estatal.
O Brasil necessita cultivar anticorpos democráticos endógenos, não apenas vacinas aplicadas verticalmente. O desafio torna-se meridiano: superar a perspectiva tutelar e romper com a reiteração da lógica patrimonialista que, historicamente, converteu a política brasileira em propriedade privada. A democracia não pode depender de vacinas judiciais administradas precipitadamente, mas deve submeter-se ao processo, por vezes tortuoso, de reencontro com a política – atividade indispensável que nos serviu de bússola em momentos obscuros.
Se uma passagem bíblica puder iluminar o raciocínio, são as Escrituras (em nosso caso, o texto constitucional e seus princípios derivativos) que devem apontar os rumos, não a prostração ante bezerros de ouro. Em 1964, foram os generais. Em 1989, elegemos um caçador de marajás. Durante metade da década passada, a genuflexão endereçou-se à "tigrada" de Curitiba. Em 2018, ao capitão arruaceiro. E deu no que deu.
Referência para a imagem: GOYA Y LUCIENTES, Francisco José de. Saturno devorando um filho. 1819-1823. 1 pintura, óleo sobre reboco transferido para tela, 143,5 cm × 81,4 cm. Museu do Prado, Madrid. Disponível em: https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/saturno-devorando-a-un-hijo/18110a75-b0e7-430c-bc73-2a4d55893bd6. Acesso em: 19 ago. 2025.
Referências utilizadas:
BARROSO, Luís Roberto. “O nosso papel é empurrar a história”. Migalhas, 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/256311/ministro-luis-roberto-barroso---o-nosso-papel-e-empurrar-a-historia. Acesso em: 19 ago. 2025.
DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos I. Tradução Patrícia de Freitas Ribeiro; revisão da tradução Aníbal Mari. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
FAORO, R. Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. [Local não informado]: [Editora não informada], [ano não informado].
HUBNER, Conrado. “Conrado Hubner critica narrativa heroica de que STF ‘salvou a democracia’”. Quatro Cinco Um, 2025. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/noticias/a-feira-do-livro/a-feira-do-livro-2025/conrado-hubner-critica-narrativa-heroica-de-que-stf-salvou-a-democracia/. Acesso em: 19 ago. 2025.
JARDIM, Flávio Jaime de Moraes. Democracia militante e jurisdição constitucional anticíclica. JOTA, 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/democracia-militante-e-jurisdicao-constitucional-anticiclica. Acesso em: 19 ago. 2025.
MIGALHAS. Democracia defensiva na visão de um membro do TCF alemão – Parte II. Migalhas, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/dinamica-constitucional/392852/democracia-defensiva-na-visao-de-um-membro-do-tcf-alemao-parte-ii. Acesso em: 19 ago. 2025.
THE WASHINGTON POST. “Brazil’s top judge warns Trump and Bolsonaro-style politics threaten democracy”. The Washington Post, 18 ago. 2025. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/world/2025/08/18/brazil-moraes-judge-trump-bolsonaro/. Acesso em: 19 ago. 2025.



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