AFINAL, POR QUE O CÂNONE INSISTE EM SUA FORÇA?
- Jacqueline Gama

- 6 de set.
- 4 min de leitura

A literatura é como uma mandala que o centro e o descentro se encontram. O cânone e a literatura contemporânea juntam-se nas cores que os tocam e nos espectros de diferentes gradientes e formas, os quais constituem o campo literário. Afinal, por que o cânone insiste em sua força, e como dobrá-lo? Derrida (2014[1967]), em A escritura e a diferença, afirma que aquilo que está fora do centro também pode estar dentro dele, constituindo um novo, este é um dos aspectos da teoria do descentramento.
Sabe-se que muito daquilo que hoje é cânone, foi inventado para a construção de uma identidade nacional que ao mesmo tempo que tocasse nas temáticas universais, e até denunciassem os estigmas sociais, no entanto, mantivesse uma estrutura de poder dominada pelas elites. O valor do cânone, então, está determinado por quem detém o poder e a erudição.
Aquilo que é eleito como cânone faz parte de um imaginário. E este foi um dos motivos que colocou a literatura brasileira naquela categoria de literatura exótica, diante do mundo. Como bem problematiza Silviano Santiago (2004, 2019) em O cosmopolitismo do pobre, e no Entre-lugar no discurso latino-americano. Em ambos, a questão da literatura é tratada pela ótica do multiculturalismo, e do contexto colonial.
O estrangeiro, via como atraso aquela literatura que não era feita no centro-europeu, seja por sua estilística ou pelas temáticas distantes de uma realidade não colonial. Assim, a literatura brasileira, aos olhos do mundo, é uma literatura menor, com l minúsculo, para coadunar com o pensamento de Deleuze e Guattari (2003), em Kafka: por uma literatura menor.
Eles tensionam diversas questões, como os limites do idioma, principalmente traços linguísticos que marcam grupos minoritários, tais quais, traços pertinentes na construção da dita literatura menor. Para Kafka, este era o caso do Alemão praticado pelos judeus de Praga, no início do século XX.
Portanto, isto se correlaciona com a construção da nacionalidade, que perpassa pelos usos da língua, desde expressões coloquiais, gírias de determinados grupos, e até idiomas de povos originários, que são escanteados nesta construção que prega o vernáculo formal, erigido por uma gramática também constituída por essa mesma elite intelectual que ratifica o cânone.
Assim, tanto a língua quanto os costumes, são fatores que aproximam ou distanciam um autor da constituição do Cânone Universal, com letras maiúsculas. No caso das ex-colônias, a literatura produzida por elas, estará pautada por um olhar eurocêntrico, principalmente dos países colonizadores. Logo, há uma distinção mundial acerca do panteão canônico, loureados principalmente com prêmios Nobel, em que as literaturas de língua francesa e inglesa saem na frente.
Este movimento também ocorre a nível nacional. As literaturas de uma Nação, e principalmente a eleição do cânone, ou seja, a escolha de um tipo de literatura que representará os âmbitos culturais dela, compõem aquilo que se espera de um imaginário nacional, que será difundido tanto dentro quanto fora dessa comunidade. Aqui coaduno com a teoria de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson (2008).
Há de se pesar, então, o valor da crítica para a construção deste cânone. O que a crítica está avaliando? E quem são estes que elegem o cânone? Antigamente, e aí penso no início do século XX, na virada cultural do século XIX. O romantismo era o cânone, e ele foi refutado pelo modernismo.
Assim, foi (re)construído o ponto de vista sobre a identidade mestiça de um país em desenvolvimento, cuja literatura de fundação foi teleguiada pelo mito da nacionalidade forjada pelo colonialismo. Atitude que constituiu o caminho que percorremos até hoje. A de um imaginário de um país em desenvolvimento contínuo, que aprende a limpar as suas visíveis chagas, mas nunca conseguiu curá-las.
Dito isso, o resgate daquilo que faltou, e a escavação da história invisibilizada, reforça a importância do revisionismo do cânone literário brasileiro. Tornando este um foco para (re)imaginar a identidade nacional, e laurear, ainda que postumamente, aqueles que pelo contexto histórico de racismo e exotização, invisibilizaram nomes como Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus, reduzindo-os a uma mera literatura negra e periférica, drenando a possibilidade intelectual e reflexiva que seus livros registraram.
Muitos destes autores denunciaram realidades outras, narrando de forma inédita, sob um espectro de originalidade acerca do Brasil, e não poderiam ficar de fora do panteão canônico, que por muito tempo os renegaram. Neste contexto, o revisionismo também serve para tomar uma outra posição diante da literatura contemporânea, principalmente ao eleger nomes como Leda Maria Martins, Ailton Krenak e Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras (ABL), instituição que simbolicamente compõe esse cânone literário nacional.
Portanto, a constituição e a abertura do cânone literário existem para deslocar o centro. E fazer dele a leitura “a contrapelo” benjaminiana (1987 [1940]). Ou seja, a literatura contada pelos vencidos, da guerra colonial. Assim, promover um novo cânone, que, mesmo utopicamente, pretende uma relação emancipatória e soberana sobre as identidades nacionais. Ao atualizá-lo, é possível acolher de forma justa, sem invisibilizar, a gama de diversidade: cultural, linguística, histórica e de estilos literários.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: companhia das letras, 2008.
BENJAMIN, Walter [1940]. Teses sobre o conceito de história (1940). In___.: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 1987, p. 222-232.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
DERRIDA, Jacques [1967]. A estrutura, o Signo e o Jogo no dicurso das Ciências Humanas. In___.: A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes, Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2014.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2004.
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In___.: Uma literatura nos trópicos: edição ampliada. Recife: Cepe, 2019, p. 09-30.
Imagem de capa: Colagem autoral. “Cânone no Brasil: o Sul é o nosso Norte” - Jacqueline Gama, 2025



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