O livro Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva é singelo e vale muito a pena ser lido. Recentemente deu origem a um filme homônimo, com direção de Walter Salles e que ganhou o prêmio de melhor roteiro no festival de Veneza. Mas não é só a singeleza que faz o livro, ele é político e relembra todo o processo de desparecimento do pai de Marcelo, o Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello) durante a ditadura, a luta política de sua mãe, Eunice (interpretada por Fernanda Torres), e o processo do Alzheimer vivido por ela. São comoventes os trechos em que o autor pontua os esquecimentos de Eunice. Mas para além disso, o livro traz um assunto que atravessa a muitos, o envelhecimento.
Diante de uma sociedade que cada vez mais descobre novos cosméticos e aplaude as últimas descobertas ligadas ao rejuvenescimento, falar de envelhecer se torna um incômodo. Entre tantos estudos realizados, um deles um fala que o envelhecimento se inicia quando nascemos. A partir dali a vida vai passando e ao mesmo tempo que vamos crescendo e amadurecendo, vamos envelhecendo. A pele vai se tornando mais rígida, o cérebro vai se apurando em suas sinapses, o rosto vai mudando, a voz e tudo mais vai se transformando.
E todo este processo se torna visível em algumas etapas da vida. Na adolescência a fisiologia explode com alterações corporais diversas. Na vida adulta parece haver uma estabilizada até a entrada dos quarenta, quando iniciam alguns pequenos sintomas/marcas, como dificuldade de enxergar, algumas rugas, batalha para emagrecer, uma pele menos viçosa. Não que o processo seja igual para todos, pois há fatores contextuais, culturais e genéticos que interferem no envelhecer. Mas de fato ocorre uma mudança corporal por vezes nítida.
Talvez a grande questão do envelhecer seja que não olhamos para este momento como um processo da vida. Ao contrário, pensamos viver em uma eterna juventude, que culturalmente, não é igual em todos os cantos. Mas que tende a ser vista como uma fase de vigor, sonhos e descobertas. Envelhecer, ao contrário, vem acompanhado pelo fim e por falta de possibilidades, enfatizando ser um momento inoportuno e que por vezes assusta. Mas independente destes adjetivos, tornar-se velho está estampado todos os dias em nossa sociedade.
Quem envelhece, por exemplo, costuma perceber seus amigos envelhecendo. Antes é bem provável que veja seus pais demostrarem os primeiros movimentos desta mudança. Por vezes isso aparece de forma mais delicada, como o caso de Eunice Paiva, onde o envelhecimento vem acompanhado de uma demência e com consequências muito dolorosas e mobilizadoras. Em outros momentos a pessoa percebe que possui gostos diferentes de pessoas mais jovens, como filhos, alunos, sobrinhos. Ou se pega sem saber a mais nova gíria ou comportamento de “pegação” que está em voga.
Por não se olhar para o envelhecimento, ele chega sorrateiro ou assustando, mas chega. E aí surgem os desconfortos diversos. Tende-se a ir mais a médicos, há exames que passam ser realizados – a exemplo do famoso exame de toque que os homens devem fazer após 45 anos ou antes a depender do histórico familiar –, o corpo perde o viço, a energia parece não ser mais a mesma. Tem-se a impressão de que algo está fora do tom. É bem provável que este momento da saúde seja um dos mais incômodos e chatos desta etapa.
Mas e se fôssemos preparados para viver a velhice? E se já falássemos da velhice sem as piadas costumeiras, os desrespeitos diversos e o tabu que ela carrega? E se enxergássemos os velhos como pessoas que também fazem sexo, que possuem desejo, que são ativos e gostam de se divertir? Esta imagem nunca é mostrada ao mais jovem, mas a quem é idoso, e por vezes cheia de estereótipo. Como, por exemplo, aquela pessoa que possui 70 anos, mas aparenta 40. Ou seja, mais uma vez a imagem é valorada e não o processo.
Saber que se vai envelhecer, permite pensarmos em coisas básicas, principalmente em um país como o nosso, com tanta desigualdade: como será minha aposentadoria? Irei me aposentar? Tenho reservas? Cuido hoje da minha saúde (o que não garante que “tudo serão flores” na velhice, mas ajuda)? Como cuidarei de mim na velhice, precisarei de ajuda? Entre outros pontos. Pensar na velhice é pensar em como quero viver e arquitetar isso para o futuro.
É preciso reforçar que em um país como o nosso, envelhecer é sofrido, pois há carência de dinheiro, de assistência à saúde, de espaços para lazer, de transporte público e cidades adaptadas. Há uma falta de respeito que não olha o idoso em toda a sua integridade. Não estamos fantasiando o envelhecer, mas alertando para a necessidade de se pensar neste momento da vida. Sim, não deixa de ser indigesta, mas tem coisas deliciosas, como em todas as etapas da vida: a famosa sabedoria, o autoconhecimento, a maturidade para não fazer cena para o que não é devido, o centramento de saber que a vida é uma eterna inconstância e que vamos morrer.
É certo que muitos chegam a velhice sem essa clareza e tendem a sofrer por coisas não realizadas ou não vividas. Por vezes acham não ter mais tempo para novas experiências. Envelhecer é estar na vida! Se não se envelhece, morre-se cedo. E envelhecer é também estar próximo da sua mortalidade, mais encostado a ela, digamos. Mas ser velho é estar vivo! E quem está vivo pode se permitir novas jornadas e caminhos. Não com o mesmo vigor, mas ainda assim isso é viver. Estar velho é dizer a si “ainda estou aqui”, é poder se encantar com um filme, um livro, um encontro com amigos, netos, filhos ou até mesmo em seu momento só. Marcelo Rubens Paiva, talvez sem querer, escreveu uma bela metáfora da vida em dois grandes momentos dela, a juventude (em seu livro Feliz Ano Velho) e a vida adulta e seu envelhecimento (no livro Ainda Estou Aqui). E ele segue ainda aqui, envelhecendo e com um vigor e tenacidade incríveis.
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Que massa :) deu vontade de ver o filme
Texto impecável com tema importantíssimo. São transformações que precisam ser naturalizadas e pensadas.