Para ouvir ao som da canção "Deixe Estar'" cantada por Liniker
Foi um encontro de algumas horas, com parte dos meus amigos. E olhar para aquele momento é entender que ali havia energia suficiente para iluminar uma cidade como Salvador. Energia de afeto, ginga, risada, gargalhadas, conversas, beijos, abraços e revelações. A amizade por vezes é tão falada, mas com uma roupagem de “positividade tóxica”, como as amizades dos filmes de “sessão da tarde”, tudo muito fofo e certinho. Mas amizade é algo muito mais profundo, um terreno humano e cheio de afetos, desafetos e beleza, é claro.
Ter amigos é um processo. Independe do tempo que se conhece a pessoa e depende de olhar a palavra no plural, “amizades”. É claro que o afeto é o que estrutura esta relação, mas nunca uma amizade será como outra. Ou seja, depende também de com quem nos relacionamos e da disposição de se construir este caminho. As vezes ele ocorre naturalmente junto a profusão de coisas boas no momento em que as pessoas se conhecem, em outros, o caminho se constrói. São relações mais lentas.
Estabelecer este laço exige a capacidade soberana de “escuta do outro”. Amigo tem o corpo todo como um grande ouvido para sentir o que o outro diz. E as vezes não é preciso responder ao outro com palavras. Um olhar, um abraço, um sorriso, um “estou aqui” já é suficiente. Aí vem um outro item lindo, o “silêncio”. Sempre penso que quando amigos são capazes de ficar em silêncio um diante do outro, durante o tempo que seja, e sem constrangimento, atingiu-se um patamar bonito na relação.
Estar em silêncio com o outro é estar-se! Sentir-se! O silêncio desnuda, denuncia e anuncia. Ele é amoroso. Daí, também aquele silêncio da distância. Não do “ghosting”, nem da indiferença, mas do afastamento sadio. Estar grudado é meio estranho. A distância entre amigos também é gostosa. Aquece e arrefece a saudade. Por vezes com longos períodos de silêncio e ausência, mas com o afeto presente. Quando se encontram, a afeição está ali, como sempre foi.
Há o “toque” também. Nem toda relação de amizade é permeada pelo toque. Tem gente que tem dificuldade em tocar e ser tocada. Um abraço longo já pode ser uma violência. O toque é terreno delicado. Daí o termo “amizades”. Com uns haverá muito chamego pele-pele, com outros poucos abraços, quase nada de beijos, mas o carinho está ali. Amigo respeita o espaço do outro e até onde o outro consegue caminhar. Compreende que as relações são diversas e por isso, bonitas.
A “verdade” é outro galho da árvore chamada amizade, ou seja, ser claro com o outro. Falar o que sente, aconselhar, ser cuidadoso, mas falar a verdade. Há estágios, acredito. Com alguns amigos, tem-se mais profundidade em determinadas “verdades”, fala-se de assuntos, que com outros não se falaria. E isso é a amizade! Um mosaico de diferenças. Mas voltando à verdade, esta é pilar de relações humanas, na minha visão a ela está acoplada a lealdade, a honestidade e a transparência. São virtudes necessárias!
E o ciúme? Tenho uma visão diferente sobre ele. Acho que é o abismo do apego. Ter ciúme do amigo do amigo, ou da namorada, do crush, sei lá, é perturbador e possessivo. Possuir uma relação profunda e amistosa de amizade não denota que um pertence ao outro. Mas que aquelas pessoas se permitem esse encontro na liberdade que experimentam. Você já percebeu que o ciúme sempre tira, nunca agrega? Quando se vive e se cede ao ciúme, alguém perde algo para dar ao outro o que ele quer. Amizade é sinônimo de afeto, mas também de liberdade.
Ouço muita gente dizer que é difícil fazer amizade “hoje em dia”. Primeiro que essa expressão “hoje em dia” é um saco! Segundo que há tantas análises a serem feitas. A primeira é o quanto nos permitimos conhecer novas pessoas, para quem saber formar novas amizades. E a outra é não esperar que as amizades sejam iguais. Compará-las é embrutecer a relação e fechar-se a possibilidades sinceras que possam surgir.
Eu diria que o mais difícil em uma amizade é quando ela termina. Acho esse término mais doloroso do que de uma relação afetivo-sexual com uma companheira (o). Quando a pessoa sai da nossa vida sem dizer o porquê. Quando a procuramos e não temos retorno. Ou quando o outro não nos procura mais. Este vácuo é asfixiante. É bom quando termina e se sabe o motivo, quando ocorre o contrário, é bizarro. Ficam as suposições: foi a mudança de religião, foi o relacionamento, a nova profissão? O que foi que houve? Dói!
Outra dor é da amizade que se afasta porque está namorando, casou, porque foi para outro país, sei lá. Pessoas que excluem o seu passado em prol daquele presente. Não quero julgar os motivos, mas o lastro de dor que deixa é grande. É nessa hora que alguns amigos vão atrás e falam, questionam, expõe e até derramam lágrimas, para entender o que houve. E as vezes, não terá jeito, nem entendimento.
Daquele encontro que levou algumas horas aqui em casa, sobraram muitas garrafas de vidro e plástico, papéis, latinhas de cerveja. Quando separava tudo para levar à reciclagem, pensei que aquela “sujeira” não era um resto qualquer. Ela iria carregada de muita risada, amor, cumplicidade, ritmo, dança, enfim, ali havia afeto, amizades diversas. E pensei o quanto seria bonito imaginar que as pessoas que pegassem esta reciclagem seriam tomadas de muita coisa boa, de energia de amigos que se amam. A amizade contamina, pois o afeto é frutífero. Amigos são raízes e também frutos que possibilitam uma existência mais humana e amorosa.
Fonte da imagem:
P.S.: se tiver oportunidade veja os livros “Téo & o Mini Mundo”, são lin-dos!
A parte do silêncio me lembrou um verso de Quintana - Amizade: quando o silêncio a dois não se torna incômodo
Suas palavras capturam o que muitas vezes tentamos expressar, mas não conseguimos. É um texto maravilhoso que nos faz repensar o valor dos verdadeiros laços e a importância de cultivar amizades genuínas. Sou sua fã e aguardo o livro rsrs!
Com amor, Samira.
Tantas questões interessantes para discutir sobre este maravilhoso texto...mas as emoções e sentimentos transbordam em mim e por características pessoais não consigo através da escrita fazer jus à verdade que testemunho nestas palavras.
Obrigada Xico!
Um brinde!🍷😉
É isso aí.