AS CRIANÇAS E A FORÇA DA NATALIDADE
- Miguel Pereira Filho

- 12 de out.
- 5 min de leitura

Enquanto milhões de pessoas estão soterrando as redes sociais com fotos antigas de quando eram crianças ou mesmo se engalfinhando para comprar presentes de última hora, a passagem do dia das crianças pode ser vista como algo além de um evento que simboliza o consumo das massas vorazes, mas conter uma significação que, infelizmente, parece mais do que rarefeita. E não, meu caro leitor, não quero dizer que o dia das crianças é também dia da mãe, pai, professoras e dos animais, muito menos afirmar sobre a suposta figura oculta.
Convive-se uma tendência mundial em que o crescimento vegetativo apresenta taxas negativas, uma tendência que não parece ser reversível a curto ou mesmo médio prazo. Por um lado, a expectativa de vida cresce graças aos avanços da medicina, o que cada vez mais tornará comum a presença de centenários. A cada dia pululam pesquisas científicas e tratamentos inovadores que prometem prolongar a vida na terra. Por outro lado, a decisão de casais em não apenas postergar a chegada de um bebê, mas simplesmente evitá-lo também é responsável pela curva descendente do crescimento vegetativo. Além de questões de ordem econômica -- custos envolvidos na criação ou planos profissionais --, subjaz uma visão cada vez mais pessimista, em que o mundo de hoje se tornou um lugar hostil para a chegada de um novo ser. É como se, mais do que preço do leite para bebês, o pessimismo escatológico que nos acomete parece ser um eficaz método contraceptivo. E essa visão, infelizmente, não está desancorada na realidade.
Num plano muito mais amplo, é possível citar as bruscas transformações climáticas causadas pelo auge do antropoceno, além das incertezas globais decorrentes das instabilidades geopolíticas. Em uma visão mais restrita, a sensação de insegurança de quem vive nas grandes e médias cidades, acompanhada de relatos de tragédias de toda sorte, desaguam em frases como "eu vou botar um filho num mundo desses?". Lembro de quando o youtuber Felca sacudiu a sociedade ao falar sobre o tema da adultização de crianças e muitos sentiam como se as trombetas do apocalipse estivessem prestes a tocar. No entanto, é justamente em períodos em que o mundo não parece ser um lugar adequado para que as crianças possam viver que elas são mais necessárias, porque elas são as únicas portadoras radicais da mudança que só a natalidade é capaz de ter.
É nesse contexto que o pensamento de Hannah Arendt se torna essencial para compreendermos o papel transformador das novas gerações. Desde As origens do totalitarismo, Hannah Arendt tece um diagnóstico sombrio de como a eliminação da pluralidade humana se tornara um fim para os governos totalitários, mas como autores como Foucault e Deleuze conseguiram demonstrar, a biopolítica é uma das principais formas de dominação nas sociedades contemporâneas, em que a ação humana espontânea deve ceder lugar ao comportamento planejado, administrado e ordenado. Mas é em A condição humana que o tema da natalidade toma contornos mais definidos. Para além de processos históricos de longa duração, ou mesmo dessas estruturas místicas que movimentos identitários tentam sofismar a realidade para além da ação humana, é na possibilidade de que alguém inteiramente novo chegue ao mundo que é possível esperar que algo realmente genuíno possa nascer. Cada criança, independente de seu sexo, gênero, cor ou classe social, tem em si mesma a capacidade de instaurar o novo tão logo ela chegue ao mundo. É com cada criança que irrompe a aurora da sua própria vida que, ainda que de maneira inconsciente, torna possível o milagre da mundanidade. Criança é antes de mais nada, o devir por excelência.
E essa conclusão me parece plausível toda vez que eu lembro de uma história contada a mim muitos anos atrás. Uma mãe pediu que o seu filho pequeno (talvez oito ou nove anos, nem ele mesmo lembra) fosse à casa do seu pai para buscar mantimentos, algo equivalente a uma pensão alimentícia nos recônditos do recôncavo baiano, num lugar onde a obra da escravidão ainda se mantinha firme, selando os destinos dos herdeiros das vítimas originais. A casa do pai era longe, muito longe, ainda mais para uma criança. Ao chegar lá, o pai do menino disse que não tinha nada para entregar, senão um cacho de bananas. Mesmo criança, aquilo despertou um sentimento de indignação alimentado pelo abandono passado, por quem nunca fizera questão de ser presente.
A indignação teve como resposta uma paulada nas costas, o suficiente para machucar corpo e alma daquele menino. A volta para a casa foi mais rápida, seja pela dor, seja pela raiva, seja pelo medo de apanhar ainda mais e, segundo me contaram, chorou tanto no caminho que, quando chegou em casa, nem tinha mais lágrimas, exceto as que guardou para derramar no colo da mãe que o aguardava. Aquele momento tinha tudo para ser o início da história de alguém muito ruim. Alguém que havia aprendido da pior forma como o mundo pode ser cruel com as crianças, um mundo onde a inocência parecia que não podia florescer. Mas a única coisa que ele disse à mãe foi "eu nunca vou fazer com meus filhos o que meu pai fez comigo".
Essa história reforça profundamente o argumento arendtiano sobre a força da natalidade. A história acima reforça o argumento arendtiano: é sempre na nova geração que é possível a criação de algo novo: novos costumes, novas percepções, um novo mundo. Ainda que o peso do passado ainda tenha a capacidade de vergar as costas das novas gerações, ou para lembrar o velho Marx, oprimir a mente dos vivos, está nesses "estrangeirinhos" a capacidade de reflexão e construção de nossas possibilidades.
Muito provavelmente, aqueles que devem ombrear em idade comigo ainda se lembrem de como a gramática da violência foi algo presente durante a infância e que é saudada como uma reminiscência de como se devem educar as crianças. Puro recalque de quem ignora ou não sabe fazer com o trauma de lidar com a mais brutal das realidades: aqueles que deveriam nos proteger foram os primeiros a nos machucar. E o que torna tudo mais complexo: talvez seja essa a única forma que eles aprenderam. Mas a mesma Arendt nos lembra que a violência é incapaz de criar nada, assim o é na política e no mundo privado.
Talvez, mesmo sem saber, o legislador tornou a proteção à criança uma tarefa não apenas dos pais e da família, mas de toda a sociedade. Assim, essa proteção deve ser compreendida no seu nível mais imediato, mas também no âmbito mais simbólico: assegurar que as primeiras idades possam ser um espaço de pleno desenvolvimento social, físico e sobretudo emocional: é urgente resgatar a importância que o cultivo dos afetos tem para a nossa formação. Apostar nessa possibilidade é talvez cumprir a nossa principal tarefa: entregar as condições para que as próximas gerações tenham a possibilidade de trazer a mudança. E é justamente por isso que rejeito a escatologia como único paradigma da compreensão da realidade. Enquanto a sociedade administrada pela engenharia genética não tiver destruído a capacidade de instaurar a realidade a partir de cada nascimento e enquanto ainda for possível olhar para cada criança e ver nela a chance inédita que esse mundo ganhou para ser diferente, ainda podemos acreditar que o novo sempre virá.
Referência da imagem: CASSATT, Mary Stevenson. Children on the Shore. [S.l.: s.n.], [entre 1885 e 1894]. 1 pintura. Disponível em: https://wahooart.com/pt/art/mary-stevenson-cassatt-children-on-the-shore-8XX6M6-en/. Acesso em: 12 out. 2025.
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.



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