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AS PALAVRAS E AS COISAS (O TEXTO)


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Antes das palavras, havia o mundo, bruto, vivo, inteiro. O menino não precisava nomear o barro para compreendê-lo; bastava tocá-lo, sentir-lhe o peso, o cheiro da chuva entranhada, o repouso das raízes. A mulher não buscava no dicionário o que o vento sussurrava. Seu corpo escutava com a pele, com os ossos, com os poros. Era o mundo ensinando diretamente, sem intermediários, sem esquemas. Aprender era experimentar, deixar-se afetar, permitir que as coisas falassem em seu próprio silêncio, sem que precisassem se dobrar aos contornos estreitos da linguagem.


A palavra veio depois, como mapa que tenta conter a floresta. E nesse intervalo entre o sentir e o nomear, algo se perdeu. O afeto, o susto, o gosto da fruta antes de sabermos chamá-la de fruta. Quando aprendemos apenas as palavras e esquecemos as coisas, perdemos o mundo em sua inteireza. Restam os nomes, mas sem eco. Restam os discursos, mas sem chão. Recuperar o vínculo entre a palavra e a coisa é reaprender o gesto, a escuta, o silêncio. É viver de novo o mundo — não como conceito, mas como presença.


Pensar sobre como as palavras e as coisas (o mundo) se relacionam, quando estão juntas e quando se separam, é um exercício filosófico que podemos iniciar com a ajuda do pensamento de Martin Heidegger. Para ele, um dos problemas centrais da filosofia ocidental é o que ele chama de "esquecimento do Ser", ou seja, o modo como passamos a viver esquecendo a profundidade do existir, ocupados apenas com aparências e utilidades. Isso aconteceu, em parte, porque transformamos a linguagem em algo técnico, frio, apenas como ferramenta para representar ou controlar o mundo. Mas no início da história humana, diz Heidegger, a palavra não era só um nome dado às coisas,  ela era um acontecimento do próprio Ser, um modo de revelar a verdade do que existe. Quando dizemos que as palavras estavam “junto às coisas”, queremos dizer que havia uma relação viva, direta, entre a linguagem e a experiência concreta da realidade.


Heidegger afirma, em textos como A origem da obra de arte e Carta sobre o Humanismo, que a linguagem é a “casa do Ser”. Com isso, ele quer dizer que não usamos a linguagem como se fosse apenas uma ferramenta qualquer, mas que é por meio dela que o Ser, ou seja, a essência das coisas, que se mostra e também se esconde. No começo da caminhada humana, palavra e coisa estavam em sintonia, como se falassem juntas. Mas com o avanço da técnica e do pensamento voltado para o cálculo e para o controle, essa sintonia se perde. As palavras se afastam das coisas e viram apenas símbolos vazios, que usamos para rotular, organizar ou dominar o mundo, sem realmente senti-lo ou escutá-lo.


Se olharmos também pela perspectiva da Bíblia, especialmente no livro do Gênesis, percebemos algo interessante. Lá, Deus cria o mundo dizendo: “Haja luz”. E depois, Adão dá nome aos animais. Aqui já aparece uma diferença importante: Deus cria o que existe: Ele dá o Ser. Adão, por sua vez, dá sentido ao que foi criado: ele interpreta, organiza, nomeia. Deus realiza o milagre de fazer surgir. Adão realiza o gesto de compreender e dar significado. Não é um ato qualquer: quando Adão dá nomes, ele não está só inventando palavras, mas participando da construção, da criação de um mundo que passa a ter forma, sentido e estrutura.


Nesse movimento, Adão não apenas coloca etiquetas nos seres vivos. Ele está fundando uma linguagem humana, que passa a organizar o mundo conforme interpretações, ideias, convenções. Esse gesto é também perigoso. Pois, com o tempo, vamos nos afastando da origem sagrada da palavra, daquela que brotava da escuta do mundo, da poesia, da comunhão. Em vez disso, passamos a usar palavras para enquadrar, controlar, dominar. Assim, a linguagem se afasta da vida verdadeira. Os nomes não ecoam mais a essência das coisas. Eles servem, muitas vezes, aos interesses do poder. Criamos um mundo artificial, onde a linguagem não nos aproxima do mistério da existência: ela nos afasta dele.


Dessa forma, o movimento das palavras que estavam próximas das coisas e depois se separaram delas representa também o drama do nosso tempo. É a passagem de um modo poético de viver para um modo técnico, onde tudo precisa ser útil, rápido, mensurável. Perdemos a escuta do Ser e mergulhamos no ruído das palavras vazias. A linguagem que antes nascia do coração do mundo se transformou num sistema de controle. E, ao perdermos esse vínculo, também perdemos algo essencial de nós mesmos. Tornamo-nos estrangeiros na própria existência.


Heidegger propõe que precisamos reaprender a morar poeticamente no mundo. Isso significa usar a palavra como quem escuta, como quem participa da vida com cuidado e respeito. Nomear as coisas não para possuí-las, mas para deixá-las brilhar em sua própria verdade. Quando nomeávamos assim, a palavra não escondia a coisa, ela a fazia vibrar, respirar, ressoar com o sopro do Ser. Esse habitar poético não é uma ideia abstrata, nem um luxo do pensamento filosófico, pois ele pulsa em existências silenciosas, em gestos cotidianos que preservam o vínculo perdido entre palavra e coisa. Às vezes, quem guarda esse saber não passou por grandes escolas, mas por grandes silêncios. Viveu mais perto da terra do que dos livros. E é aí que encontramos sinais de que a escuta do mundo ainda resiste.


Esse resistir é tão vigoroso, que ainda há quem resista e saiba. Como a menina que não só sabia ler, mas sabia do mundo. Ela não precisou que lhe explicassem o tempo: sentia no cansaço das formigas quando a chuva vinha, percebia no tremor dos galhos a sombra do lobo, mesmo sem jamais tê-lo visto. Não conhecia tão somente o nome de “tristeza”, mas quando a mãe mergulhava em silêncios longos, ela colocava uma flor murcha ao lado do prato e desenhava um sorriso com casca de laranja. Aprendera o gesto que escuta antes da palavra que define.


Na escola, diziam que ela precisava aprender as palavras. Ela tentou. Escreveu “sol”, mas o sol não coube ali. Escreveu “rio”, mas o rio escorregou pelas margens do caderno. Então, desistiu do dicionário e se pôs a escutar o mundo. Ouviu o mato dizer que se colhe com cuidado, o tempo sussurrar que a dor tem seu ciclo, e a lua ensinar que é possível brilhar mesmo incompleta. Sem fazer alarde, ela aprendeu as coisas, como quem ama: não por saber nomear, mas por saber ser. E nesse silêncio onde o mundo ainda fala, talvez esteja o começo de uma nova linguagem, não para dominar, mas para habitar.


Essa reflexão termina com uma pergunta profunda e desafiadora: como podemos recuperar essa relação íntima entre a palavra e o mundo? Como voltar a uma linguagem que canta, ora, silencia, que se dobra diante do mistério, em vez de apenas explicar, medir ou mandar? Talvez a resposta esteja entre Deus e Adão, entre o Verbo que cria e a palavra que nomeia. Talvez devamos reencontrar o sagrado do dizer. Uma forma de falar que não fala sobre o mundo de fora, mas fala a partir de dentro dele, como quem escuta antes de dizer.




10 comentários

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Manoele Carvalho
há 5 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Perfeito! Inspirador entender a relação entre a linguagem e a realidade por meio da experimentação direta. No início a palavra e a coisa estavam em sintonia, mas atualmente a linguagem se tornou técnica, uma ferramenta de controle. O texto nos mostra que a linguagem é a "casa do Ser" como diz Heidegger, mas na contemporaneidade não há a expressão do "Ser" de forma genuína, e sim, muitas vezes palavras vazias.

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Adriana
há 5 dias
Respondendo a

Interessante "o antes das palavras", não precisavam nomear para compreender, era o mundo em sua forma pura e direta.

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Taiane dos Santos Araújo
há 6 dias
Avaliado com 4 de 5 estrelas.

É um texto, muito interessante e maravilhoso pós nos devolve a beleza de escutar o mundo antes de auto nomea-lo. Ele nos lembra que a linguagem só faz sentido quando nasce da presença, do silêncio e do gesto, e que talvez a verdadeira sabedoria esteja em aprender a sentir novamente aquilo que as palavras sozinhas não conseguem alcançar.

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Geovana Santos Nunes
há 6 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Gostei bastante do texto! Ele nos faz refletir sobre como antes das palavras, as pessoas aprendiam sentindo o mundo com o corpo e com o coração, depois a linguagem foi ficando fria, distante, como se os nomes não dessem conta da vida verdadeira. O texto em si nos mostra que perdemos essa ligação entre o que sentimos e o que dizemos, mas ainda é possível voltar a ouvir o mundo com atenção, como faz a menina da história. O texto nos convida a usar as palavras com mais cuidado, deixando que elas aproximem e não afastem a gente da vida.

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DILZA RAMOS
14 de nov.

Faço uma reflexão a partir de um olhar de Zygmunt Bauman que me ajuda a entender esse desencontro. Ele nos fala de uma modernidade líquida, onde tudo escorre pelas mãos: os vínculos, os afetos, até mesmo o sentido das palavras. A linguagem, que antes nascia da escuta do mundo, virou ferramenta de controle, de consumo. As palavras se afastaram das coisas. E nós, das experiências que nos tornavam humanos.

Vivemos cercados de discursos, mas sem chão. De nomes, mas sem eco. De palavras, mas sem mundo. Bauman diria que essa é a marca do nosso tempo: a substituição do ser pelo parecer, do sentir pelo representar. A linguagem virou embalagem. E nós, consumidores de significados prontos e rasos, esquecemos como…

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Jozeane Teles
13 de nov.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

A linguagem é a "casa do ser". 👏👏👏

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