A internet revolucionou a sociedade: permitiu a disseminação dos argumentos inválidos e ilegítimos (falácias) através de proposições (premissas ou conclusões) falsas. As falácias informais, cotidianas, são pautadas menos pela lógica do que por subjetivismos e psicologismos de toda ordem. Na internet, qualquer pessoa, por ignorância ou má fé, pode disseminar ao mundo suas argumentações infundadas. Sem teor crítico, o interlocutor aceita-os e leva-os como uma verdade incontestável. E ainda passa a ser um mero reprodutor. Mas por que chegamos ao ponto de aceitar o conteúdo das premissas sem nenhum embasamento? Parece que perdemos algo; alguma certeza que possamos confiar e compartilhar universalmente.
Escuto: Dória é comunista porque é a favor do globalismo. A premissa é que ser a favor do globalismo é ser comunista e logo isso chancelaria Dória. Pergunto: o que é comunismo? O que é globalismo? Qual a relação de globalismo e comunismo? Baseado em que teoria ou autor? E por que Dória é comunista? Quais são os encadeamentos lógicos, os estudos, a trajetória do político, a pesquisa que aponte traços de comunismo no governador de São Paulo? E qual o problema de seguir determinada orientação política?
Os questionamentos acima deixarão o interlocutor paralisado ou agressivo. Gostaria muito que o deixasse paralisado e o incitasse a uma postura diferente, antes de propagar argumentos inválidos. Mas, infelizmente o espírito do tempo tem levado muitas pessoas a serem agressivas ou, simplesmente, ignorar um raciocínio crítico (no meu caso, científico) em favor do subjetivismo - único critério verdadeiro na mente do interlocutor rebelde. Tanto a má fé, como a pura ignorância, tem desprezado a autoridade científica.
Mas a internet e o espaço público estão aí, aceitando todo tipo de falácia tentadora, reforçando crenças e valores solipsistas. Uma constatação óbvia: perdemos um terreno comum, algo que dê conta da ignorância, da má-fé e do solipsismo. Um lugar comum que agregue conteúdo com premissas que possamos encarar como verdadeiras e aceitáveis universalmente. E neste ponto, precisamos de uma moralidade que abarque o nosso mundo, um bem comum. Sim, é uma argumentação que nos levará ao pensador Auguste Comte. Olha aí a gente tendo que voltar aos clássicos! Vamos lá.
Auguste Comte (1798-1857) foi importante para a ciência por estabelecer e sistematizar as bases de uma metodologia rigorosa, com critérios comuns de observação, objetividade, sistematização de leis e teorias coerentes, mesmo que provisórias. Em suas palavras: “A observação verdadeira como única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, criteriosamente adaptados à nossas necessidades reais”[1].
Em suma, subordinar a imaginação à observação. Exaltar os fatos em oposição às ideias.
Em tempos normais diríamos ser um absurdo idolatrar os sentidos e os fatos, negligenciar a subjetividade da ação humana, limitando o conhecimento. Mas em tempos de pandemia e grave desconfiança sobre a ciência...
Comte foi além: o espírito científico deveria propagar-se em toda a sociedade; um empreendimento que deveria atingir todas as classes. Formar-se-ia um novo ser humano. Por isso, empenhou-se em desenvolver uma nova moralidade universal à vida comum, pós-medieval.
Segundo a teoria positiva da Humanidade, demonstrações irrecusáveis, apoiadas sobre a imensa experiência que possui hoje nossa espécie, determinarão exatamente a influência real, direta ou indireta, privada ou pública, própria a cada ato, a cada costume, e cada tendência ou sentimento [...][2]
Como o catolicismo havia perdido o ofício de ordenar uma cultura comum no seio social, caberia à ciência nascente cumprir este papel de autoridade, com o objetivo de desenvolver um novo sentimento moral e social sólido, calcado na racionalidade. Era necessário introjetar um espírito positivo, educativo, em nome da moral e orientado por pesquisadores comprometidos. A ciência, portanto, mais do que um saber teórico e prático para desvendar a realidade, seria uma orientação para a vida coletiva.
Comte foi um crítico das filosofias liberais, metafísicas modernas, que, em sua visão, assentavam-se no puro individualismo, num atomismo reduzido à intuição/subjetivismo/egoísmo e contrário ao “nós”, a uma noção de coletividade ou humanidade. Também foi um crítico da fraqueza e inconsistência do pensamento religioso, que baseava o conhecimento sobre o mundo através da cegueira dogmática e da unilateral preocupação com a salvação eterna, incompatível com o contexto de desenvolvimento da inteligência humana.
Não pretendo resgatar todas as incoerências de Comte ao longo de sua trajetória, afinal ele foi um indivíduo em um determinado contexto que cometeu vários equívocos teóricos, como por exemplo a lei dos três estágios, criação de leis deterministas nas sociedades ou propagação de uma religião da humanidade. Mas não podemos negar que ele estava preocupado com as desordens de seu tempo, as perdas de referências, a instabilidade das instituições – políticas, religiosas, econômicas – e os graves problemas sociais que acometiam a França e vários países europeus, como o excesso de violência, revoltas constantes, homicídios, pobreza.
O senso comum, de comportamento pré-reflexivo, e as teorias da conspiração abudantes afastam-se da credibilidade da ciência. E, infelizmente, pasmem! muitos cientistas têm negligenciado o próprio rigor científico, sobre o tratamento dos fatos reais, contaminando a pesquisa ou a metodologia científica, antes mesmo das conclusões possíveis.
E no meio virtual, quantas opiniões e compartilhamentos de facebook, twitter e instagram vemos a torto e a direito, sem validade lógica ou sem criticidade quanto às premissas e conclusões? Isso é também um mal dos tempos. Posso não gostar de determinado político, mas isso não me dá o direito de compartilhar informação sem verificar a fonte. Isso não me dá o direito de opinar através de critérios meramente subjetivos e desprovidos de veracidade.
Leitores, é fato que estamos, sim, numa crônica crise social. Talvez não tão perceptível por estarmos no olho do furacão. A pandemia só veio constatar o que já sabíamos, que estava lá debaixo do tapete. Precisamos encontrar uma nova moralidade, uma ontologia coletiva contra os feudos modernos, os muros físicos ou virtuais, que estão espalhados por todos os lados. A desorientação sobre uma linguagem comum, de um mundo comum, baseado em premissas verdadeiras, objetivas, contrárias ao subjetivismo tolo, à rasa imaginação, as superstições e fantasias e a idolatria de falsos salvadores e mitos, está nos levando a uma trilha que, cedo ou tarde, naufragará a nossa civilização. E sabe-se lá o que virá depois.
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https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2019/10/04/do-positivismo-ao-pos-moderno-como-homeopatia-se-explica-no-brasil
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