top of page
Foto do escritorJacqueline Gama

BACURAU 5 ANOS DEPOIS E O CONCEITO DE DISTROPIA




Este texto é uma adaptação compactada do que originalmente apresentei na minha defesa da dissertação intitulada “Transes do presente: uma análise antropófaga e distrópica do filme Bacurau”, o deixo aqui tanto para que ele atravesse os muros da Universidade como para que o conceito concatenado por mim neste trabalho, o de distropia, ganhe outros rumos.


O contexto histórico do período do lançamento, agosto de 2019, foi preponderante para a escolha da pessoa do discurso na dissertação, já que eu também estava vivendo as mudanças temerárias daquele Brasil. A principal delas: a ameaça do fascismo. Este foi um momento no qual já estavam sendo produzidas “narrativas pós-2013”, temática de um dos projetos da minha orientadora, em que meu trabalho se insere. Estas narrativas refletiam sobre aquele cenário brasileiro, desde as manifestações de junho de 2013, perpassando pelo golpe de Estado sofrido por Dilma Rousseff, em 2016. E que, em 2018, resultou na injusta prisão de Lula, pelas mãos da operação Lava-Jato.


Então, em 2019, abriram-se as veias fascistas do Governo de Bolsonaro, o qual teve como uma das principais consequências a população jogada na linha da fome, o desmonte da cultura e da educação, além do abandono em meio a uma pandemia global. Esses são assuntos que trago na dissertação e os correlaciono com o filme dos diretores pernambucanos, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Penso sobre isso tanto no sentido de uma obra premonitória quanto crítica à realidade que estava posta, não só naquele momento como também com destinação ao porvir. E hoje estamos vivendo uma luta constante contra o fascismo, vide o caso mais recente da França.


Em Bacurau, os elementos distópicos são escassez, Estado autoritário e ameaça iminente de morte. Inclusive, na trama há uma relação nítida do prefeito Tony Jr. com a chancela dos assassinatos promovidos pelos Bandolero Shocks; um grupo de extermínio vindo dos EUA que está no vilarejo para promover um jogo de caça aos bacurauenses.


Na trama, existe uma nítida batalha de colonizador versus colonizado, evidenciado principalmente na cena da mesa, na qual os Bandoleiro racializam os Forasteiros, advindos do Sul do Brasil. Os comparsas, que se liam como brancos, são colocados por eles nas mesmas categorias dos bacurauenses latinos e mestiços. Analiso algumas cenas sobre essa relação nos segundo e terceiro capítulos da dissertação.

 

Acerca da temática do colonizado que tenta imitar o colonizador, ou ser assimilado por ele, performado por Tony Jr. e pelos Forasteiros em Bacurau, recorro às ideias de Albert Memmi, em Retrato do colonizado, e de Frantz Fanon, em Os condenados da terra. Apesar de ambos trazerem exemplos diferentes de contexto colonial, chegam à mesma conclusão: o subalternizado nascido no país colonizado, que goza do privilégio de raça e classe dentro da ex-colônia, mesmo que explorem seus conterrâneos, normalmente os mais pobres e não brancos, continuarão a ser vistos como menores ou inferiores pelo colonizador.

 

Reflito sobre a face distópica também adentrando a questão das políticas de morte fomentadas e chanceladas pelo Estado contra os bacurauenses, utilizando principalmente as teorias presentes nas obras:  Necropolítica, de Achille Mbembe, Vidas Precárias, de Judith Butler e o conceito de sujeito subalternizado, de Spivak, em Pode o subalterno falar?. As correlaciono ao contexto contemporâneo brasileiro, que promove e banaliza o extermínio de populações marginalizadas.

 

Também promovo uma reflexão acerca da tecnologia como prática de extermínio, através do livro Teoria do drone, de Gregorye Chamayou, principalmente por conta da intempestividade e letalidade deste dispositivo de vigilância, que na narrativa é trazido pelos Bandolero. O drone sobrevoa Bacurau silenciosamente como se fosse um disco voador, mapeando a área. Este objeto, contemporaneamente, vem se tornando popular em situações de guerra, problemática também abordada por Mbembe. Esta arma é uma aliada do capitalismo gore, teoria de Sayak Valencia, que reflete sobre o extermínio hiperviolento de corpos marginalizados, os quais são cooptados pelo sistema explorador que os criou.

 

Esses elementos fazem parte do espectro da distopia, principalmente quando os Bandolero, com a ajuda dos Forasteiros, tentam apagar Bacurau do mapa com um bloqueador de satélite, e executam procedimentos para aniquilação da população, subestimando a sabedoria ancestral e escolar dos nativos, além da herança cangaceira desconhecida por eles.


A comunidade, no entanto, permanece resistente, organizada e alegre, promovendo uma construção de utopia coletiva, como se estivesse seguindo a passagem do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, quando ele afirma “A alegria é a prova dos nove”.  Bacurau celebra a ancestralidade, a qual engloba: a mestiçagem brasileira, ainda que por uma via de colonização violenta, a relação de liderança e proteção matriarcal, além dos aspectos do xamanismo e da transmutação herdada dos povos originários.


Assim, Bacurau estaria na terceira margem, uma vez que reúne um cenário distópico com gestos utópicos, o qual denomino de distropia, e que também aponto a localidade dos trópicos como fator preponderante para a conceituação teórica. Bacurau se localiza geograficamente no interior do Nordeste brasileiro, e forma uma das regiões tropicais que resistiram e resistem, essas são as sociedades descoloniais. Na dissertação, discuto este olhar por meio das contribuições de Catherine Walsh e Walter Mignolo. Também ponho em perspectiva o conceito de glocal, a partir de Mignolo e do habitar colonial, teoria de Malcom Ferdinand. Faço isso a fim de tecer reflexões entre local e identidade, questão pungente em Bacurau.


A distropia, então, seriam narrativas que se passam em contexto distópicos, dentro da região dos trópicos, principalmente na América Latina, e que possui uma união da comunidade que trabalha para um projeto de futuro comum, uma utopia de sociedade pensada coletivamente. Claro que na dissertação trago teorias como A Utopia, de Morus, A República, de Platão e a própria Constituição Brasileira, de 1988, para pensar esse projeto do comum. Também elegeria outras narrativas como a série 3% para pensar essa distropia que se alinha a questões do Bem Viver, do Quilombo e do Futuro Ancestral, aspectos que trabalhei no texto da dissertação sobre Bacurau.


Quanto ao filme, cinco anos depois, posso afirmar que muitas lutas ali ainda são pertinentes, e só vão acabar quando nos tornarmos um outro Brasil, sem milicias e sem fascismos. Descolonizados. Enquanto existir desigualdade social e fome, a tendencia é apelarmos para a violência não como vingança, mas como sobrevivência. E o que restará será a solidariedade do outro, essa que é um gesto utópico, principalmente nas periferias, quilombos e aldeias.


Bacurau nos faz rememorar do Brasil de 2019 e do Brasil do cangaço. Nos lembrando sempre da importância da educação e da conservação da memória, principalmente com a preservação do museu. Também nos rememora do papel das Igrejas, que deveriam ser opção de escolha de fé e não de doutrinação cega que destrói as Instituições de cultura e ensino. Além disso, a potencialidade do matriarcado, exposto em tela, pode ser transformada em recado para o espectador, afinal quem carrega o povo  brasileiro nas costas são as matriarcas, e é impossível não pensar no papel das mães solo para a constituição do bem estar comum do povo brasileiro.


4 comentarios

Obtuvo 0 de 5 estrellas.
Aún no hay calificaciones

Agrega una calificación
Obtuvo 5 de 5 estrellas.

Bom demais, Jaq! Bacurau é um belíssimo retrato de uma época que ainda é a nossa, e o conceito de distropia é uma grande sacada

Me gusta

Obtuvo 5 de 5 estrellas.

Interessante o conceito criado. Parabéns!

Me gusta

Parabéns pela dissertação e temática apresentada. Lembrei da chacina em Canudos,praticada pelo estado republicano.

Me gusta
Jac Gama
Jac Gama
18 jul
Contestando a

Na dissertação trago o exemplo de canudos e também dos bandos do cangaço.

Me gusta
bottom of page