COMPRIMIDO E O INCONSCIENTE: Notas Sobre a Ritalina e o Desejo de Saber
- Kaihany Assis

- 28 de out.
- 2 min de leitura
Atualizado: 5 de nov.

Há, nas mesas de estudo dos alunos de medicina, um pequeno altar moderno: o café, as anotações rabiscadas e a Ritalina, esse comprimido que promete silêncio à mente e obediência ao corpo.
A automedicação entre estudantes tornou-se um segredo sabido, um silêncio compartilhado. Mas talvez o que se automedica não seja apenas o corpo: é o mal-estar de existir sob o peso de um ideal. Freud nos advertia, em O Mal-Estar na Civilização, que todo progresso cobra um preço em sofrimento. Aqui, o preço é o corpo que não pode falhar, a mente que não pode parar, promessas de foco, de vigília, de silenciar o cansaço. Há quem diga que é apenas sobrevivência, mas há algo mais nesse gesto, quase ritual.
Esses jovens aprendizes da cura tentam curar-se daquilo que os forma: a exaustão, a angústia, o medo de não saber. Sabem demais, conhecem nomes, dosagens, reações, e ainda assim algo lhes escapa. Mas o que busca aquele que engole a química do foco?
Na superfície, é o desejo de aprender; nas profundezas, o medo de não bastar.
Ao medicar-se, tenta calar o sintoma que insiste: a falta. Aquela que nenhum comprimido apazigua. A falta que é condição do desejo e também da escuta. O perigo, então, é que o fármaco ocupe o lugar da palavra, transformando o discurso médico em defesa contra o próprio inconsciente.
Como diria Freud; “o eu não é senhor em sua própria casa”, e talvez, nessa tentativa de domínio, o estudante queira justamente expulsar o incômodo do inconsciente, calar o ruído da falta que o habita.
A Ritalina, nesse cenário, funciona como metáfora do “superego moderno”: doce em sua promessa, tirânica em sua exigência. Ela sussurra: produza, permaneça desperto, não falhe. E o sujeito obedece, acreditando que pensar é um ato mecânico, esquecendo que o saber, na psicanálise, nasce do tropeço, do lapso, do erro que ensina.
Lacan talvez diria que o estudante busca gozar do saber, fazer dele um objeto de consumo. O comprimido encarna, então, esse objeto: um pequeno fragmento de gozo que tenta preencher o vazio do desejo. Mas o desejo, como se sabe, não se satisfaz; quanto mais se tenta contê-lo, mais ele escapa, mais exige. E assim, entre madrugadas e provas, o futuro médico corre o risco de perder a dimensão do cuidado consigo mesmo.
Talvez, um dia, o estudante perceba que o verdadeiro saber não se encontra na vigília forçada, mas no ato de sonhar; esse espaço onde o pensamento se permite ser corpo, afeto e falta. A Ritalina silencia por algumas horas, mas o sujeito, esse ser dividido, logo retorna ao seu exílio essencial: aquele entre o desejo de saber e o limite de existir. E é nesse intervalo, entre o foco e o esquecimento, que a alma talvez comece, enfim, a aprender.
Talvez o gesto mais ético e mais humano fosse o de escutar o próprio corpo como se deve escutar um paciente: com tempo, com paciência, com amor. Porque, antes de prescrever, é preciso suportar o silêncio.
E é nesse intervalo entre a pílula e a palavra que talvez nasça o verdadeiro médico: aquele que se permite, enfim, ser também sujeito.
IMAGEM: Aventuras na história



Mais um texto de extremo conhecimento, sensibilidade e profundidade! Palavras que demonstram o saber! Parabéns! Brilhante!
Perfeito sua fala, menina dos meus olhos. Em toda seu texto você é presente, porque tem haver com o seu dia a dia! A cada dia você me surpreende, amei.. Bjos
Kai, seu texto é de uma sensibilidade imensa. Ele fala com uma verdade que atravessa quem já sentiu o peso de tentar ser o melhor enquanto o corpo e a mente pedem descanso. Você conseguiu colocar em palavras algo que muita gente sente, mas não consegue expressar: esse vazio que a rotina tenta preencher com café, remédio e silêncio. No trecho em que você fala da Ritalina como um “superego moderno” é genial, porque mostra o quanto a busca por foco e perfeição pode nos afastar do que há de mais essencial, que é o cuidado com nós mesmos. Ler isso é como se a gente se enxergasse por dentro, com todas as nossas tentativas de dar conta de tudo.…
Pode-se substituir a ritalina pela Khalilinda. Parabéns pela mensagem!
Parabéns pelo texto, Kai! Uma reflexão densa e poética sobre o uso da ritalina como sintoma do mal-estar contemporâneo. Resgata a importância de escutar o corpo, o limite e o inconsciente. Mostra que, ao buscar rendimento e controle, o aluno de medicina se distancia de si mesmo e do verdadeiro sentido do saber — que nasce do limite, do erro e da escuta do próprio corpo.