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CONSCIÊNCIA NEGRA, ESCRAVIDÃO HISTÓRICA E ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DA PERSISTÊNCIA ESTRUTURAL DA SUBJUGAÇÃO RACIAL NO BRASIL


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O Dia da Consciência Negra, celebrado esta semana, no dia 20 de novembro, é uma convocação para romper o silêncio histórico que paira sobre a formação do Brasil. Não se trata de um feriado opcional, de uma data identitária ou de um gesto político ocasional; é, antes de tudo, um marco civilizatório que exige da sociedade brasileira reconhecer o peso da história que insiste em moldar o presente. Por isso, neste dia de se afirmar a dignidade da população negra, é inevitável confrontar episódios contemporâneos que evidenciam a permanência da lógica escravocrata. Entre eles, destaca-se o caso mais recente e brutal ocorrido em Pernambuco, onde uma mulher foi resgatada após 36 anos mantida em condições análogas à escravidão, submissa a uma família que se apropriou de sua existência, silenciou sua subjetividade e apagou sua humanidade. Esse caso não surpreende: ele denuncia, de forma crua, que o passado não passou. A escravidão, no Brasil, se transformou, mas não desapareceu.


Infelizmente, esse é apenas mais um dos muitos casos noticiados de tempos em tempos nos jornais, internet e demais meios de comunicação. São casos que causam revolta e espanto e muito se questiona: “como, em pleno 2025, em pleno século XXI ainda ouvimos e lemos histórias como essas? ”


Para compreender a profundidade desse fenômeno, é preciso voltar ao século XVI, quando o colonialismo português implantou no território que viria a ser o Brasil um modelo econômico baseado na monocultura, na exportação e, principalmente, na exploração intensiva da mão de obra escravizada africana. A escravidão aqui não foi apenas instrumento econômico: ela se tornou matriz organizadora da sociedade, definindo relações de poder, hierarquias raciais, estruturas familiares, políticas públicas e até a subjetividade nacional. O Brasil foi o último país ocidental a abolir formalmente a escravidão, e isso não foi acidente histórico, mas demonstração da profundidade com que esse sistema se enraizou. Durante séculos, naturalizou-se a ideia de que pessoas negras existiam para servir, ideia tão violenta quanto duradoura.

Quando a Lei Áurea foi assinada em 1888, ela não ofereceu qualquer alternativa material aos recém-libertos. Não houve indenização, políticas de redistribuição, acesso à terra, educação, saúde ou inclusão social. O país simplesmente declarou livres milhões de pessoas que haviam sido transformadas em mercadorias humanas, mas imediatamente as lançou à própria sorte em um ambiente hostil, sem recursos, sem direitos e sem proteção. A escravidão acabou na lei, mas persistiu na prática por meio de mecanismos que se atualizavam: criminalização da pobreza, leis de vadiagem (que por sinal ainda persiste como contravenção penal, prevista no art. 59 da Decreto-lei nº 3.688/41), colonização europeia incentivada, exclusão racial sistemática. A abolição foi formal, mas nunca foi social.


É exatamente essa transição incompleta que permite entender por que, 137 anos depois, ainda encontramos pessoas vivendo em regimes domésticos de servidão, como ocorreu com a mulher pernambucana. O caso não é exceção: é continuidade histórica. Ele expõe a permanência de uma mentalidade colonial que se deslocou da senzala para dentro das casas de classe média. A escravidão doméstica contemporânea não usa correntes, mas se sustenta no isolamento imposto à vítima, na dependência emocional e financeira construída, na manipulação psicológica e na ausência completa de alternativas. Muitas vezes, essas mulheres entram na casa ainda crianças ou adolescentes, com promessas de “criação”, “cuidado” ou “educação”, e ali são apagadas como sujeitos. O discurso de que são “da família”, tão comum na cultura brasileira é, na prática, instrumento ideológico que mascara a exploração extrema.


A criminologia crítica oferece ferramentas fundamentais para interpretar esse fenômeno. Ela ensina que o crime não é apenas um ato individual, mas expressão de conflitos estruturais, desigualdades históricas e sistemas de poder. No caso da escravidão contemporânea, o recorte racial é evidente: as vítimas são, majoritariamente, mulheres negras, pobres, com baixa escolaridade e pouca rede de apoio. Elas não são selecionadas por acaso; são alvos preferenciais exatamente porque a sociedade construiu, ao longo de séculos, uma imagem desumanizada desses corpos. O olhar colonial que atribuía à mulher negra a função de servir, obedecer e suportar ainda opera nos lares brasileiros, perpetuando uma violência naturalizada.


A criminologia feminista aprofunda essa análise ao revelar como o patriarcado se combina ao racismo na produção de vulnerabilidades. A mulher negra, nesse contexto, ocupa o espaço mais baixo da hierarquia social: é corpo útil, corpo trabalhado, corpo disponível. Sua exploração não é apenas econômica; é moral, emocional, sexual e existencial. A sociedade cobra dessas mulheres uma resiliência desumana, que, na verdade, é o nome nobre dado ao abandono. O isolamento que marcou a vida da mulher pernambucana durante 36 anos é uma forma extrema dessa violência, mas a mesma lógica opera em diversas modalidades de exploração, inclusive as consideradas “normalizadas”.


Quando se observa a atuação do Estado nesses casos, percebe-se outra dimensão criminológica essencial: a seletividade penal. Embora o Código Penal brasileiro tipifique o crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, a fiscalização é precária, os mecanismos de denúncia são frágeis, e o sistema de justiça é lento para responsabilizar famílias de classe média ou alta, que se beneficiam do capital simbólico da “respeitabilidade”. Em contrapartida, o Estado é célere, eficiente e implacável quando o infrator ocupa o polo racializado da sociedade: jovens negros residentes de periferias, que são alvos constantes da repressão policial. A seletividade penal, portanto, é mais uma herança da escravidão: o controle sobre o corpo negro se mantém, mas a punição sobre os brancos que exploram esse mesmo corpo é mínima.


A escravidão contemporânea não se mantém por acaso. Ela se sustenta em pilares ideológicos que atravessam séculos: a crença de que a casa é território privado onde o Estado não deve interferir; a ideia de que relações de cuidado e trabalho doméstico são naturalmente femininas; a noção de que pessoas pobres ou sem instrução “devem gratidão” a quem lhes oferece abrigo; e a ficção de que explorar alguém em nome de “ajuda” não é exploração. Esses discursos moldam subjetividades e criam condições ideológicas que permitem que uma mulher seja explorada por décadas sem que ninguém perceba, ou pior, sem que ninguém se disponha a intervir.


Por isso, o Dia da Consciência Negra deve ser compreendido como ato de insurgência histórica. Ele não celebra apenas a resistência do povo negro; ele exige que a sociedade reconheça o vínculo direto entre a escravidão colonial e a escravidão doméstica atual. Ele evidencia que o racismo não é uma anomalia moral, mas estrutura de poder. Ele revela que a desigualdade racial não é resultado de mérito individual, mas herança material e simbólica de séculos de exploração. Ele denuncia que a liberdade, proclamada em 1888, continua inacessível para muitos.


A história da mulher resgatada em Pernambuco é, portanto, história do Brasil. É fruto de um país que não reparou seu passado, não reconheceu sua dívida, não protegeu sua população negra e não transformou suas instituições. É reflexo de um pacto social silencioso que tolera a submissão de algumas vidas para garantir o conforto de outras. Enquanto o mundo celebra avanços democráticos, o Brasil ainda se confronta com situações que remetem ao pior de sua formação.

E é justamente por isso que esse caso precisa ser amplamente debatido no contexto do Dia da Consciência Negra. Não para reavivar tragédias individuais, mas para reconhecer o quanto ainda estamos distantes de uma sociedade justa. O resgate dessa mulher não devolve os anos perdidos, não sana o trauma e não resgata a infância roubada. Mas escancara a urgência de romper com a normalização do racismo, com a romantização das relações domésticas exploratórias e com a estrutura penal seletiva que protege exploradores e pune explorados.


A consciência negra não é, portanto, consciência apenas da população negra; é consciência nacional. É o reconhecimento de que a história da escravidão não terminou, apenas mudou de cenário. É a convicção de que a luta pela igualdade racial deve atravessar políticas públicas, educação, sistema penal, cultura e relações sociais. É a certeza de que, enquanto houver uma única mulher negra vivendo sob servidão física, emocional ou econômica, o Brasil seguirá sendo um país à espera da verdadeira abolição.



REFERÊNCIAS:


DIREITO NEWS. PE: Mulher é resgatada após 36 anos em condições análogas à escravidão. Disponível em: https://www.direitonews.com.br/2025/11/pe-mulher-resgatada-36-anos-condicoes-analogas-escravidao.html. Acesso em: 23 nov. 2025.


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Manuel Jr
há 2 dias
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Texto fantástico! Grande sensibilidade em escrever sobre o tema!

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