CRIME ORGANIZADO É AMEAÇA CONCRETA AO ESTADO BRASILEIRO
- Miguel Pereira Filho

- 2 de nov.
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Enquanto o país e o mundo ainda se recuperavam das imagens aterradoras da operação policial no Rio de Janeiro, a madrugada de sexta-feira no município de Canindé, no Ceará, foi marcada por uma ofensiva do Comando Vermelho que, ao ser surpreendida pela polícia local, terminou com a morte de sete integrantes. No Rio, o governador Cláudio Castro (PL) começava a receber os primeiros resultados da pesquisa que aferia o apoio popular às operações nos complexos do Alemão e da Penha. Em Fortaleza, o governador Elmano de Freitas (PT) exaltava a ação policial como um “sucesso contra o crime”. No mesmo dia, o governador baiano Jerônimo Rodrigues (PT) afirmava que, em seu estado, “aqui está sob controle”.
O que une esses estados nordestinos, além da filiação partidária de seus governadores, é o fato de ambos figurarem entre os líderes nacionais em índices de homicídio. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Bahia e Ceará registram, respectivamente, taxas de 40,6 e 37,5 homicídios por cem mil habitantes. O Rio de Janeiro, embora palco do debate mais midiático, ocupa a 15ª posição. Das dez cidades mais violentas do país, todas estão no Nordeste. Em termos de letalidade policial, a PM baiana é a segunda que mais mata no Brasil.
Esses dados revelam que a tragédia humanitária que se espalha pelo país diz menos respeito às ideologias políticas do que a um problema de ordem civilizacional. A segurança pública, tema lateral nas últimas eleições, caminha agora para se tornar o eixo do debate político de 2026. Ao conduzir a operação no Rio, Cláudio Castro não apenas afastou o plebiscito sobre a soltura de Bolsonaro, como também capturou o monopólio discursivo da direita em torno da pauta da ordem — com barricadas menos simbólicas, mas tão reais quanto as erguidas pelos traficantes.
Nesse cenário, a fala estabanada do presidente Lula, ao afirmar que “traficantes são vítimas dos usuários”, agravou a crise discursiva do governo e da própria esquerda, que não consegue formular uma narrativa compatível com o sentimento social. A pesquisa Quaest que mediu o apoio à ação policial revela a verdadeira fenomenologia do cidadão médio brasileiro: cansado de abusos e insegurança, parte significativa da população vê na força o último recurso de estabilidade. Trata-se de um deslocamento perigoso na janela de Overton — o espectro das ideias politicamente aceitáveis —, que se moveu de forma a legitimar práticas autoritárias e execuções sumárias.
O agravamento da violência e a erosão das instituições tornaram o autoritarismo não apenas tolerável, mas desejável. Sim, “bandido bom é bandido morto” — para uma parcela expressiva do país, esse refrão deixou de ser um exagero para se tornar senso comum. Contudo, reduzir esse fenômeno à nossa herança autoritária é insuficiente: há, também, um sentimento legítimo de desamparo social. O clamor por ordem é, em parte, o grito de quem foi abandonado pelo Estado.
Hoje, centenas de famílias cearenses foram expulsas de suas casas; facções promovem um êxodo interno comparável ao de zonas de guerra. Milhares de brasileiros vivem sob domínio territorial de grupos criminosos que destroem, na prática, o contrato social. Se a letalidade policial — convertida em um aparelho de guerra — corrói o Estado Democrático de Direito, admitir a existência de territórios fora de sua autoridade é negar o próprio Estado. Onde o crime impõe leis, julga disputas e presta “serviços”, o país já não existe.
Em Leviatã, Thomas Hobbes descreve o Estado como um “homem artificial”, criado para conter a violência que os destruiria no estado de natureza. A obediência, portanto, não decorre da virtude, mas do medo — o contrato social nasce da necessidade de sobreviver. Em termos hobbesianos, o crime organizado representa a dissolução do homem artificial, pois substitui a autoridade soberana por poderes privados que governam pelo medo. E se, como lembrou Léon Trotski, “todo o Estado se funda na força”, esse mesmo Leviatã torna-se um espectro de si mesmo, sem capacidade de cumprir sua função teleológica. A guerra civil continua.
A solução, contudo, não pode prescindir da Política. A reação popular à violência não deve ser lida apenas como fascistização, mas como sinal de saturação: o país não suporta mais. Produzir mortos, como mostram os dados, não resolve; no dia seguinte à operação, os armados continuam nas ruas. E isso não significa ceder às pulsões de morte — muito pelo contrário. A sede por sangue existe naqueles que aterrorizam famílias em seus enclaves. Buscar ações enérgicas e definitivas não é incompatível com os pressupostos da civilização ocidental. Como afirma uma personagem de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien: “A guerra deve acontecer, enquanto estivermos defendendo nossas vidas contra um destruidor que poderia devorar tudo; mas não amo a espada brilhante por sua agudeza, nem a flecha por sua rapidez, nem o guerreiro por sua glória. Só amo aquilo que eles defendem”.
A via possível exige reconstrução institucional e coordenação federativa. A tensão entre centralização e descentralização, entre a civilização pela lei e a diversidade territorial, persiste como dilema histórico — desde que pensadores como Visconde do Uruguai, Tavares Bastos e Alberto Torres refletiram sobre a unidade nacional. O papel do governo central em conter a fragmentação territorial — o “balcanismo” latino-americano — foi crucial para preservar a integridade do Estado brasileiro, mas também engendrou a cultura da imposição vertical da ordem.
Contudo, há exemplos de que cooperação e coordenação são possíveis. A criação do SUS e as políticas nacionais de educação mostraram que União e estados podem agir conjuntamente, superando a rivalidade política em nome da efetividade pública. O mesmo deve ocorrer na segurança: é preciso ação conjunta, integrada e permanente.
Mais do que tudo, o país precisa devolver dignidade a quem vive sob o jugo do crime, com ocupação estatal efetiva, serviços públicos e cidadania real. A força deve existir, mas para garantir a paz — não para reproduzir a guerra. Sou, como muitos, um incrementalista: creio em reformas graduais, sustentáveis. Mas é ilusório imaginar que enfrentar o crime organizado dispensará medidas firmes. O combate à violência passará inevitavelmente por Rio, Bahia e Ceará. Afinal, no futuro estaremos todos mortos. Se o Estado não agir agora, talvez não reste mais país para governar.
Referência da imagem: BARCELLOS, Felipe. Bandidos voltaram a colocar barricadas em ruas de São Gonçalo. A Tribuna RJ, São Gonçalo, 05 jul. 2023. Disponível em: https://atribunarj.com.br/materia/bandidos-voltaram-a-colocar-barricadas-em-ruas-de-sao-goncalo. Acesso em: 2 nov. 2025.
Referências bibliográficas
GENIAL/QUAEST. Pesquisa Genial/Quaest sobre a avaliação do governo do Rio de Janeiro. Nov. 2025. Disponível em: https://genialquaest.com.br. Acesso em: 2 nov. 2025..
G1. Entenda o que motivou o ataque do CV que resultou na morte de sete membros da facção no Ceará. G1 Ceará, 1 nov. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2025/11/01/entenda-o-que-motivou-o-ataque-do-cv-que-resultou-na-morte-de-sete-membros-da-faccao-no-ceara.ghtml. Acesso em: 2 nov. 2025.
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido. Os males do presente e as esperanças do futuro. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976 [1861].
TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1914.TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. Tradução de Ronald Kyrmse. São Paulo: HarperCollins Brasil, 2019.
URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1862.



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