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ENTRE VAPOR E CÓDIGO: O Sopro Humano no Espelho Liso dos Algoritmos


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*Jonathan Pereira da Silva


Quando Walter Benjamin profetizou a perda da “aura” na arte reprodutível (A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica), não anteviu os espelhos quebrados dos deepfakes. Hoje, a IA generativa cria obras sem ponto de partida humano. O que é original? A assinatura de Duchamp num urinol (1917) ou o código de um GAN que gera infinitas Fridas digitais? Byung-Chul Han alerta: na sociedade da transparência (Sociedade do Cansaço), o original dissolve-se no fluxo. A “autenticidade” já não reside na materialidade, mas na assinatura digital, como os NFTs que tentam ressuscitar a aura através da blockchain. Hito Steyerl, contudo, vê na cópia corrompida (In Defense of the Poor Image) uma nova política: o original morreu, mas seus fragmentos democratizam o olhar. Então, proclamo: A arte não morre, desmaterializa-se. Como um rio que abandona seu leito para tornar-se vapor.


A promessa utópica da internet “todos são artistas” (Joseph Beuys) esbarra no apartheid algorítmico. Enquanto Paris Hilton vende NFTs por milhões, favelas brasileiras têm 30% da população sem internet (Datafavela, 2023). Frantz Fanon (Os Condenados da Terra) gritaria: a colonialidade agora veste roupagem digital. Plataformas como Midjourney exigem GPUs caras; galerias virtuais privilegiam artistas com capital cultural. Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido) diria: a exclusão digital é epistemicídio. Quando o Louvre virtual atinge 10 milhões de visitas, mas museus indígenas sequer têm site, configuramos uma estética da segregação: o belo é moldado por quem controla os servidores e esquecem que o clique do mouse é a nova fronteira: mais intransponível que muros de museus.


O caso de Dana Schutz, branca pintando o corpo dilacerado de Emmett Till (2017), gerou um terremoto: petições para destruir a obra, acusações de apropriação racial. Michel Foucault (A Ordem do Discurso) compreenderia: todo poder gera contra-poderes. O “cancelamento” é a vingança dos corpos silenciados pela história da arte ocidental. Mas quando algoritmos amplificam a caça às bruxas, Judith Butler (Excitable Speech) questiona: não estaríamos trocando a crítica dialética por linchamentos digitais? Angela Davis lembra: “Não se combate ao racismo com silêncio, mas com diálogo radical”. O desafio é distinguir censura puritana de justiça reparatória, como quando indígenas Tikmũ’ũn exigem a remoção de obras sagradas roubadas. A partir desta perspectiva, entendemos que apagar uma tela não apaga a história, mas riscar nomes pode ser novo epistemicídio.


O Spotify recomenda “músicas como essa”; o TikTok viraliza coreografias idênticas. Byung-Chul Han (Psicopolítica) desvela: os algoritmos são jardineiros invisíveis que podam a diversidade estética. Estudos do MIT (2023) mostram: 87% das tendências do Instagram vêm de 3% de influencers brancos. O samba de roda baiano, o djabaté guineense, os sand drawings de Vanuatu, formas de beleza marginalizadas pela ditadura do “scroll”. Édouard Glissant (Poética da Relação) propõe a “beleza relacional”: contra a homogeneização, tecer redes de ressonâncias múltiplas. Enquanto o algoritmo impõe uma monocultura do sensível, coletivos como Afrofuturismo hackeiam plataformas para semear arquivos insurgentes, mas preferimos ignorar que o algoritmo é o novo deus do Olimpo e seu juízo estético decide quem merece ser visto.


A filosofia da arte digital exige, como dizia Aristóteles, “discernir em cada caso o justo meio”. Entre original e cópia, acesso e exclusão, cancelamento e diálogo, padronização e diversidade, não há respostas simples. Hannah Arendt (A Condição Humana) nos guia: a arte é o espaço onde o “milagre da ação” se manifesta. Que nossa criação digital não seja refém de códigos, mas poesia em estado selvagem, como os grafites de rua que algoritmos não conseguem catalogar. Afinal, como cantou Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta.” No fundo sabemos que os deepfakes e algoritmos não são demônios, mas espelhos que refletem nosso dilema ancestral: como preservar a chama da autoria quando o fogo se dispersa em centelhas virtuais? Clarice Lispector responderia: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”. Desejamos uma arte que seja mais que dados, que seja como um ato de resistência íntima contra a tirania do previsível.



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*escritor, poeta, e palestrante. Graduado em Letras da Língua Inglesa Contemporânea pela Achieve Languages (Oxford)




REFERÊNCIAS:


BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. 1936.


HAN, B. Sociedade do Cansaço. 2010.


STEYERL, H. In Defense of the Poor Image. 2009.


FANON, F. Os Condenados da Terra. 1961.


FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. 1971.


GLISSANT, É. Poética da Relação. 1990.


ARENDT, H. A Condição Humana. 1958.


HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica (1953).


LISPECTOR, C. Água Viva (1973).


IMAGEM: Boxnet

2 Comments

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Dálet Lima
há 3 dias
Rated 5 out of 5 stars.

Um texto maravilhoso que mostra como a arte no ambiente digital, mesmo expandindo possibilidades criativas, continua atravessada por disputas de poder, acesso e representação.

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Rated 5 out of 5 stars.

Um texto para refletirmos sobre os limites e obstáculos do nosso processo de entendimento e "avaliação" de conteúdo.

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